segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Michel Foucault – Parte I

“Não me perguntem quem eu sou e não me digam para continuar o mesmo: esta é uma moral de estado civil.” Michel Foucault

Em 1975, o jornalista e escritor francês Roger-Pol Droit entrevista seu conterrâneo Michel Foucault. Foucault, à época, já é lenda. Uma incógnita, a descontinuidade enfeixada em uma personalidade única e multifacetada, pertencente a e, por que não, a liberdade por excelência. Foucault acabara de publicar Vigiar e Punir, um dos seus livros mais conhecidos e, nesta série de três entrevistas, disserta, expõe-se, esconde, brinca, joga a respeito de seus pensamentos, literatura e sua vida e obra, numa das raras vezes em que Foucault se sente a vontade para falar sobre si. Estas entrevistas são reunidas e publicadas por Droit no livro Michel Foucault, Entrevistas (Editora Graal, 107 páginas). A introdução feita pelo autor do livro é uma pequena obra de arte. Versa sobre o sujeito principal de uma peça, a sua própria vida, encenada com violência e paixão, nas palavras de Droit:

“Uma criança frágil se entedia entre duas guerras em Poitiers, em meio á vida abastada de pessoas eminentes como são as da sua família e, notadamente, seu pai, cirurgião e professor de anatomia na Escola de Medicina. Um aluno muito dotado vai para o liceu Henrique IV preparar-se para a Escola Normal Superior. Em 1948, um estudando da École Normale Supérieure, homossexual e membro do PCF tenta suicidar-se e parece beirar a loucura. Um filósofo apaixonado por psicologia, abandona a Fundação Thiers pela Universidade de Lille. Na Suécia, um adido cultural surpreende a pacata cidade de Uppsala dirigindo um jaguar. Ao voltar de Hamburgo, via Varsóvia, um jovem médico, dândi feliz e provocador, ensin em Clermont-Ferrant. O anti-comunista trava uma disputa com Roger Garaudy. Um membro do júri da École Normale d’Administration, participa da elaboração da reforma Fouchet.
Todos eles se chamam Michel Foucault...”

Sua vida e obra, absurdamente caóticas, prolíficas e descontínuas, foi interrompida pela Aids em 1984, aos cinqüenta e sete anos. Muito pouco se sabia a respeito da doença à época (o vírus fora descoberto em 1983 pelo Institut Pasteur), e Foucault guarda a triste memória de ser um dos primeiros casos “célebres” a falecer.

Abaixo, um excerto deste livro, o que mostra a clareza e o brilhantismo das idéias de Focault. Os grifos e itálicos são uma petulância minha.

" Dos suplícios às celas"

Supliciava-se (o corpo) com aplicação, seguindo um código preciso de torturas. Marcavam-se, amputavam-se, deslocavam-se corpos. Da fogueira ao patíbulo, do pelourinho à forca, o sofrimento físico era encenado com um fausto exemplar. Para que ninguém o ignorasse... Tudo isto chegou ao fim, de modo bastante brusco, na segunda metade do século XVIII.

O barulho monótono das fechaduras, a sombra das celas ocuparam o lugar do grande cerimonial da carne e do sangue. Não se exibe mais o corpo do condenado:ele é escondido. Não se quer mais assassiná-lo: ele é adestrado. É a “alma” que é reeducada.

A mudança ocorreu em menos de um século, no conjunto da cultura ocidental. Certamente, a Idade Média não ignorava os cárceres nem as masmorras. Porém, continuava estranha a este sistema rígido de detenção sistemática, regulamentada, minuciosa, que se estabelece entre 1780 e 1830: a Europa e o Novo Mundo cobrem-se de penitenciários... A este “nascimento da prisão”, Michel Foucault restitui o sentido e o alcance.

Basta dizer, com os “reformadores” do século XVIII (Beccaria), que a “humanização”, os “progressos do gênero humano” explicam e justificam este transtorno do sistema punitivo? Por detrás dos álibis dos ideólogos, Foucault desnuda o jogo complexo dos poderes.

O estardalhaço dos suplícios e o silêncio da reclusão não se opõem, com efeito, como dois elementos isolados, dois fenômenos superficiais. Indicam, sim, a passagem de uma justiça a uma outra, uma mudança profunda na própria organização do poder. O criminoso, na monarquia absoluta, desafia o poder do rei e este poder o esmaga lembrando a todos, com estardalhaço, sua força infinita. para os teóricos das Luzes, o homem que comete um crime rompe o contrato que o liga a todos os seus semelhantes: a sociedade pó afasta e o adestra, regulando com precisão cada fato, cada gesto e cada momento da vida carcerária.

Pois a prisão é uma regulamentação feliz do espaço: o olhar do vigia pode e deve tudo ver. Uma regulamentação do tempo, cuja utilização é fixada a cada hora. Uma regulamentação dos gestos, das atitudes, dos mínimos movimentos do corpo.

Esta disciplina, a prisão não a inventou. Com um luxo de referências e de documentos, Foucault mostra como, durante toda a Idade Clássica, as técnicas de adestramento do corpo foram refinadas, unificadas, sistematizadas. Elas já existiam, esparsas, isoladas. Mas não formavam esta rede de procedimentos aperfeiçoados que, da escola às Forças Armadas, passou a controlar o corpo e suas forças.

A prisão, não é, então, única: ela se estabelece no conjunto da sociedade disciplinar, esta sociedade de vigilância generalizada que é ainda a nossa. “O que há de surpreendente, escreve Foucault, se a prisão se assemelha às fábricas, às escolas, às casernas, aos hospitais, que todos eles se pareçam com as prisões?”.

Para compreender sua organização comum, Foucault esboça nesse livro uma “anatomia política”, uma “microanálise” da ação de poder sobre os corpos. Como se organiza, na prisão e fora dela, o jogo dos poderes? É o que esta entrevista, entre outras, torna preciso.

Roger-Pol Droit: A prisão, em sua função e em sua forma contemporânea, pode passar por uma invenção repentina e isolada, ocorrida no final do século XIX. Você mostra, ao contrário, que seu nascimento deve ser realocado numa mudança mais profunda. Qual?

Foucault: Ao ler os grandes historiadores da época clássica, pode-se ver o quanto a monarquia administrativa, tão centralizada, tão burocratizada quanto a imaginamos, era, apesar de tudo, um poder irregular e descontínuo, deixando aos indivíduos e aos grupos uma certa latitude para burlar a lei, para se acomodar aos costumes, deslizar entre as obrigações,etc. O Antigo Regime arrastava consigo centenas de milhares de ordens jamais aplicadas (lettres-de-cachet, As verdades e as formas jurídicas), direitos que ninguém exercia, regras às quais massas de pessoas escapavam. Por exemplo, as fraudes fiscais mais tradicionais, como também o contrabando mais manifesto, faziam parte da vida econômica do reino. Em suma, havia entre a legalidade e a ilegalidade uma perpétua transação que era uma das condições de funcionamento do poder nesta época.

Na segunda metade do século XVIII, este sistema de tolerância muda. As novas exigências econômicas, o medo político dos movimentos populares, que vai se tornar lancinante na França, depois da Revolução, tornam necessário um outro esquadrinhamento da sociedade. Foi preciso que o exercício do poder se tornasse mais fino, mais estreito, e que se formasse, desde a decisão tomada centralmente até o indivíduo, uma rede tão contínua quanto possível. Trata-se do aparecimento da polícia, da hierarquia administrativa, da pirâmide burocrática do Estado napoleônico.

Já bem antes de 1789, os juristas e os “reformadores” haviam sonhado com uma sociedade uniformemente punitiva, onde os castigos seriam inevitáveis, necessários, iguais, sem exceção nem escapatória possíveis. De repente, estes grandes rituais do castigo, que eram os suplícios, destinados a provocar efeitos de terror e de exemplo, mas aos quais muitos culpados escapavam, desapareceram diante da exigência de uma universalidade punitiva que se concretiza no sistema penitenciário.

Roger-Pol Droit: Mas por que a prisão e não um outro sistema? Qual é o papel social do confinamento, do enclausuramento, dos “culpados” ?

Foucault: De onde vem a prisão? Responderei: “Um pouco de toda parte”. Houve uma “invenção”, sem dúvida; mas invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, de identificação dos indivíduos, de esquadrinhamento de seus gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isto, desde os séculos XVI e XVII, nas Forças Armadas, nos colégios, nas escolas, nos hospitais, nas oficinas. Uma tecnologia de poder fino e cotidiano, do poder sobre os corpos. A prisão é a última figura desta idade das disciplinas.

Quanto ao papel social do internamento, é necessário buscá-lo do lado deste personagem que começa a se definir no século XIX: o delinqüente. A constituição do meio delinqüente é absolutamente correlativa á existência da prisão. Procurou-se constituir, no próprio interior das massas populares, um pequeno núcleo de pessoas que seriam, por assim dizer, os titulares privilegiados e exclusivos dos comportamentos ilegais. Pessoas rejeitadas, desprezadas e temidas por todo mundo.

Na Idade Clássica, ao contrário, a violência, o pequeno furto, a pequena fraude eram extremamente correntes e, afinal de contas, toleradas por todos. O malfeitor conseguia, ao que parece, fundir-se muito bem na sociedade. E, se lhe acontecesse ser preso, os procedimentos penais eram expeditivos: a morte, as galés para o resto da vida, o banimento. O meio delinqüente não tinha, então, este fechamento sobre si mesmo, que foi organizado essencialmente pela prisão, por essa espécie de “molho” no interior do sistema carcerário, onde se forma uma microssociedade, onde as pessoas encetam uma solidariedade real que vai lhes permitir, uma vez fora, encontra apoio nos outros.

A prisão é, então, um instrumento de recrutamento para o exército dos delinqüentes. É para isto que ela serve. Fala-se, há dois séculos: “A prisão fracassa, pois ela fabrica delinqüentes”. Eu diria, antes, ela é bem-sucedida, pois é isso que se lhe requer.



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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

"A estrada só existe quando a percorremos."

Querido primo:


"A estrada só existe quando a percorremos." Esta é, por certo, uma frase que guarda ressonância com muitas outras que tratam do mesmo tema. Na verdade, até parece que foi dita várias vezes ao longo da história e literatura humana, em todos os cantos que trouxeram o tópico à tona. Eu humildemente a lancei mão na viagem que eu e minha namorada fizemos no final do ano para passarmos o reveillon na magnífica Pirenópolis.


Saímos de Goiânia à tardinha, aproveitando ainda a iluminação natural do sol nos dias longos de nosso verão. Ainda estava claro quando saímos, o escurecer só chegando após as sete e meia, sete e quarenta. Em uma das curvas mais acentuadas, já com bastante chão andado, ponderei sobre como gostava de dirigir a noite, e percebi que as sombras e os contornos difusos projetados pela luz oblíqua do entardecer, ao invés de incutir temor, transformavam a paisagem, que há muitos poucos minutos era definida e previsível, em algo um tanto

pastoso, intrigante. E o que mais apreciei era a curiosidade crescente em mim sobre o que poderia vir após as curvas, retas, montes e baixios.


A estrada só passou a existir para mim quando a percorri. Embora fosse uma estrada traçada há muito tempo, bem asfaltada e segura, a mim era um risco em um mapa de Goiás ou uma imaginação ao pé de uma boa conversa, uma leitura. Ela não tem nada de espetacular ou um ponto cardeal, somente um caminho que corta o espaço geográfico de nosso Estado entre duas cidades, a capital, e a do interior. Cidades, fazendas, plantações e rios. Uma pequena estrada que me trouxe uma das maiores realizações que já tive.


Tudo isto grandemente influenciado pela leitura do clássico On the Road, de Jack Kerouac, edição de bolso, da L&PM que você já te recomendei. Um dos símbolos do inconformismo da geração anos 60, em um tom autobiográfico, a lenda nos conta como Kerouac escreveu o livro tomado por um "fluxo de consciência" em três semanas, datilografados em um rolo de papel de 40 metros de comprimento, em espaço único, sem parágrafos, de maneira musical, devendo ser lido em voz alta, com alternâncias poéticas e rimas que somente no original brilham em toda a sua loucura e vivacidade.


Sei que você gosta de História, então lá vai um cadinho. No período pós-guerra, onde a cultura dominante lutava para reassumir as rédeas, sentindo que o mundo caminhava cada vez mais para o conformismo e esmagados pela repressão psicológica da "lei e ordem", surgiu, o que alguns denominam a primeira como a primeira forma de sub-cultura, entre muitos movimentos de contestação, a Geração Beat. Tanto podemos utilizar o termo para nomear o grupo de escritores que iniciou o movimento quanto para denominar o movimento que eles detonaram. Estes prezavam por uma existência mais dionísica, improvisada, caótica, enfim, "contracultura". A vida que você sempre quis levar mas teus pais não deixam.


Muitas pitadas de jazz (por excelência o estilo musical do improviso), bebidas e drogas; prezando pelo retorno à humanidade sincera e afetiva; ao calor dos corpos:


ao sexo como forma de expressão e liberdade...


todos estes fatores aliados à mais pura sinceridade e alegria de existir deflagraram o início da revolução cultural dos anos 60, um dos temas mais fascinantes da História do século XX e que modificou todo o curso do que viria, principalmente o Rock. Este é o tipo de livro que se ama pela descrição e pela musicalidade, pela loucura, pela alegria, pelo simples prazer de ler. Embora longe de ser uma unanimidade, visto que o modelo de vida pregada é totalmente incompatível com a cultura mainstream e os valores de grande parte da cristandade ocidental, aos de espírito livre certamente agradará, como você. O primeiro do ano!


Ao ano de 2008, saúdo os novos caminhos e oportunidades que certamente nos serão mostrados. Espero que nos esforcemos mais para retirá-los do mapa e transformamos em estradas percorridas. Pois só assim elas, de fato, existirão.


Ps: Meu amado primo, já é 22 de janeiro e terminei o terceiro livro do ano. A Jangada de Pedra, de José Saramago e Felicidade, de Eduardo Giannetti são congruentes? Veremos! Até a próxima carta, e me escreva constantemente. Um abraço.

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terça-feira, 11 de dezembro de 2007

in vino veritas


Era segunda feira e eu tinha acabado de sofrer na cadeira do dentista uma tortura inigualável (hmm... mentira, mas fica mais dramática a história). Aturdido e padecendo de dores, comecei a pensar com os meus botões: o que fazer naquela noite? Já estava de férias e sem a faculdade, mais tempo sobra para estes pequenos prazeres. Minha namorada chegou com uma brilhante idéia: vamos à loja de vinhos que abriu na esquina!

“Opa, alto lá cara-pálida... vinho?”. De vinho eu só tenho ciência dos litros e garrafões que já entornei quando era moleque e ficava ouvindo música e tocando violão com os meus amigos, debaixo do pé de manga na casa do Raphael. Em suma, sou um zero à esquerda nesta arte tão requintada da enologia. Peçam-me uma sugestão de vinho e eu devo falar algo como “Mas com essa grana você compra 2 caixas de Bohemia!”. É mais ou menos assim.

“Hmm... boa idéia. Vamos lá, vamos ver se consigo enfim gostar tanto de vinho como eu gosto de certeza.” Dá para perceber que seria mais uma perdição na minha vida. Mas como eu gosto do mal-feito, me vesti e fomos à loja.

Sempre me lembro do Sideways – entre umas e outras (continuo me surpreendendo com a criatividade das pessoas que traduzem os nomes dos filmes... só a Polícia Federal consegue superá-los com o nome de suas operações.), um filme que eu acho horrível e entediante, mas para os conhecedores e amantes da bebida deve ser muito bom. Até tentei compreender e apreender sobre as variedades de uva essas coisas, mas não consegui.

A noite prenunciava-se fria e perfeita, já que no DVD outro filme nos aguardava Stardust, de Neil Gaiman (o criador de Sandman). Este sim vale cada gigabyte baixado. Outra história para um outro dia.

A loja é realmente muito bem arrumada, e oferece muitos vinhos e outras coisas gostosas, e o preço estava bem em conta (cerveja Therezópolis a R$3.89 !). Bom, vamos lá, deixa eu esquecer a cerveja e me enfurnar por aqui e ali, dar uma pesquisada e achar algo que o valha. Sempre me dizem que meu problema com o vinho é o preço dos que compro, mas fica complicado um mamão como eu pagar trinta e cinco reais numa garrafa espetacular e não achar nada de mais.

Procurei pelos vinhos chilenos e argentinos, já que pelo que leio, oferecem um ótimo custo-benefício (note bem essa palavra, custo-benefício...). Olha daqui, bisbilhota dali, eu to sem muita grana, então achei que comprando um entre 15 e 20 reais seria uma boa escolha, ou pelo menos não poderia ser tão ruim né?

Fiquei entre um argentino e um chileno. Bom, nessa hora uma opinião de quem entende é o necessário, então eu e minha namorada fomos ao sommelier, ao vouletier, sabe-se lá qual o nome do cara que conhece disso. Com toda a tranqüilidade pergunto:

“Amigo, estou em dúvida entre este chileno e este argentino. Qual você me recomendaria para acompanhar alguns quei...”

“Escolhe este (o argentino). Este chileno é reservado, difícil, mais complexo, enquanto este é um bom vinho. Ele é honesto.”

“Honesto?”, eu redargüi.

“É, por este preço... Ele é bem honesto”.

Porra. Por este preço? Que raios isso quer dizer? A honestidade do vinho tem a ver com o preço? Aliás, que merda é essa de honestidade? Aliás, não, aliás mesmo, alguém pode me explicar se o cara estava tirando onda comigo ou não? Eu estou até agora achando que o cara me tirou...

Acabou que ainda levei o vinho só para entender o que ele queria dizer com essa tal honestidade. Não entendi a palavra, mas era um bom vinho no final das contas.

Honestidade ... sei...

Ps: O motivo da Foto? O cidadão atrás ao centro, o espetacular Johm Entwistle, era um famoso apreciador de vinhos (e outros aditivos mais ...). Em 27 de junho de 2002, um dia antes da abertura da turné americana do The Who, o baixista foi encontrado morto em seu quarto no Hard Rock Hotel e Casino, em Las Vegas. Ao seu lado, reza a lenda, garrafas de vinho e cocaína.

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domingo, 9 de dezembro de 2007

Olhos de Cão Azul

1967. No mundo, a Guerra Fria se desdobra no Vietnam. No Brasil, é iniciada a escalada para os violentos “anos de chumbo”, que viriam dois anos depois. Movimentos estudantis e de esquerda iniciam a luta armada contra a ditadura que marcaria a ferro e fogo nossa nação.

Na música, em primeiro de junho os Beatles lançam o álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (considerado o número 1 de todos os tempos pela revista americana Rolling Stone), revolucionando todo o rock. Uma incipiente banda edita seu debut, The piper at the gates of dawn, (seis anos depois, lançaria sua obra prima The Dark Side of the Moon...). Jimi Hendrix lança seu Are You Experienced, e o planetinha nunca mais foi o mesmo.

Morrem Ernesto Rafael Guevara de la Serna e João Guimarães Rosa. Tanta coisa acontecendo em tempos conturbados e confusos (mas quais não são?). Eis que, neste mesmo ano de 1967, estas singelas palavras anunciaram a definitiva entrada de um escritor colombiano entre os deuses da literatura humana.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como um ovo pré-histórico. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com os dedos."

Gabriel Garcia Márquez inicia assim o seu livro “Cem Anos de Solidão”. Talvez acometido pela mesma febre da insônia que ataca a família Buendía, eu li todo o livro em dois dias intercalados por uma noite lá pros meus dezoito anos. Não conseguia entender como palavras, sem rebusque nem pedantismo, colocadas uma após a outra, tal qual formigas em um trieiro, conseguiam me atingir com tamanha fúria, feito bruxaria.

Pois o mesmo fado que atravessa a família Buendía, já aclamada nos versos “porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”, é o mesmo feitiço que te acorrenta ao livro. Ainda te lança em uma atemporalidade permanente a cada página lida, ao reconhecimento mútuo com os personagens que se sucedem. Os atores dum mundo fantástico e real ao mesmo tempo, um mundo onde a confusão de nomes parecidos dos personagens, todos os Josés, Arcadios, Aurelianos, não traz penúria a quem lê, mas o encarcera no universo de Garcia Márquez, recorrente em todos os seus livros.

Macondo não é uma vila impossível. Macondo é a própria história da América Latina, das cidades pequenas e das grandes metrópoles. É o atraso de mãos dadas com o progresso, o sonho, a loucura e a paixão que habita nossas paragens. A banana e as formigas, o café e os bois, o rio que traz o ouro e a enchente. As montanhas e a distância que impedem a informação do mundo exterior, e a protegem da chegada da revolução e da guerra. Os constantes ciclos que as cidades passam de fartura e de desgraça, arrastam consigo seres humanos que estão irremediavelmente ligados à terra, ao seu local de existência.

Cada Buendía carrega consigo um dom que é tambem a sua maldição. Por entre os momentos de felicidade percebe-se a solidão de um personagem ou a solidão difusa que se espalha por sobre a casa. A solidão que está agarrada ao barro da parede, à cal da pintura branca, aos peixinhos dourados, os animaizinhos de caramelo, solidão esta que se recusa a sair da mente e do coração dos personagens. Toda a aparente imortalidade da família, que se confunde nos elos de pais e filhos, sobrinhos e netos que, indubitavelmente, carregam uma característica do seu genitor e comportam-se tal como avô, o pai, a mãe. Todos são imersos na solidão.

Mas não a solidão que em nosso tempo é taxada de maléfica, inconcebível ao ser humano, e combatida violentamente pelos livros de auto-ajuda, os produtos, antidepressivos. Talvez a solidão que Vinícius deixa entremear nas linhas de alguns de seus poemas, principalmente Dialética,onde ainda enxergo um quê de tristeza/solidão muito presente. É a solidão que inevitavelmente atinge o ser humano pois ele existe. Talvez, advenha do vazio da existência. Mas considero que é a solidão necessária ao engrandecimento do espírito e da mente.

Garcia Márquez dizia que gostaria de escrever como sua avó lhe contava estórias. E esta é uma estória belíssima e triste ao mesmo tempo, em que a solidão é preenchida pelos entes e pela realidade fantástica dos acontecimentos da vida, uma vida em que ocorrem incestos, assassinatos, luxúria, desejo e mentira, traição, desprezo e perfídia de maneira simples, em que a violência é transmitida assim como a alegria, de forma calma e pacífica, se isso pode ocorrer. Não há sobressaltos nos adjetivos e descrições, nem emoções em demasia. Tudo é muito fluido e muito perene. Em uma época tão recente, como o autor descreve, em que as coisas careciam de nome, o romance existe por si só, te laça por ele mesmo e se expande e contrai em um ritmo natural. Não é necessário nada, além de um espírito livre para ouvir uma história.

De qualquer modo, não há como viver e não ter lido “Cem Anos de Solidão”. Teria por mim, uma vida muito solitária quem o fizesse.


Ps: O título, "Olhos de Cão Azul", é outro dos livros de Gabriel Garcia Marquez. Eu considero um dos títulos mais legais de livro que já vi.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Curta Brasileiro

Laços, Flávia Lacerda e Adriana Falcão

Com boas e singelas idéias, podemos fazer algo de positivo. Este curta é um exemplo. Foi vencedor do concurso Project Direct no YouTube e será exibido no Festival de Sundance, um dos mais importantes do cinema alternativo. O roteiro é de Adriana Falcão, mãe da atriz principal Clarice Falcão, e foi dirigido por Flávia Lacerda, com fotografia de Felipe Reinheimer e participação de Célio Porto e Jô Abdu.

Simples, com fotografia enxuta e edição rápida. Os angulos são exatos, nem demasiado longos, mas que utilizam o momento correto para transformar a linha da história. A montagem e edição, aliado à boa música, piegas sim, mas emotiva, que tiram do roteiro a sua última gota de autenticidade. De outro modo, seria um lugar comum piegas (valeu ogro!) como tantos que vemos por aí.

Vale lembrar que foram três os escolhidos entre os curtas que competiram e o brasileiro ficou em primeiro lugar.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Bushido

Ato VII, Cena III

Melquíades se encontra perdido na densa neblina, o único remo que resta pende ao lado de seu corpo, um sol de meio dia atravessa o nevoeiro, a opacidade lhe é própria dos olhos. Na vigota da proa, o Diabo está sentado.

Diabo:
Acorda.

Melquíades:
Deixe-me em paz, pelo menos aqui neste momento.

Diabo:
Fraco como sempre. Lá me vem a cantar exéquias antes do fato.

Melquíades:
Essa sua arrogância me cansou há muito tempo.

Diabo:
Que se há de fazer, sou o Maldito. Sabes que toda a sorte de defeitos e malefícios são creditados à minha pessoa.

Melquíades:
O que você veio fazer aqui?

Diabo:
Vim lhe acompanhar a dar cabo da idéia imbecil, porém a mim deveras satisfatória, que há muito ronda tua pestana. Sei que há algum tempo eu coloquei-lhe pedras no caminho que seriam suficientes para levar-te ao sanatório ou ao cemitério. Mas, deus sabe por que, eu me afeiçoei a você. E por isso, eis-me.

Melquíades:
Veio me dissuadir?

Diabo:
Com que pensas que estás falando? Com Deus? De maneira alguma lhe falaria “não faça”. De minha parte, saiba que aguardo ansioso.

Melquíades:
Seu abjeto. Aflição e sofrimento. Não cansa do eterno tormento da humanidade?

Diabo:
Tua própria pergunta lhe responde. Sou eterno. Aliás, permita-me um gracejo. Fazia alguns anos que não sorvia com tanto deleite angústia e desgosto tão reais, tão puros, tão... românticos.

Melquíades:
Sim, sofro... Por ela, ainda haveria de sofrer mais, se vida houvesse.

Diabo:
Repetindo fatos conhecidos de todos. Derrama-te o tempo todo, andas encolhido, macambúzio e quase não conversa. Emagrece a olhos vistos. Finge não vê-la, mas só aumenta a imensidão de teu vazio com os rápidos relances que lhe chegam às vistas. És tolo, feito da matéria prima dos néscios e derrotados. À luz, transparece todo o seu desejo. Por isso andas na sombra. Belo espécime de uma raça há muito extinta. Prazer deu-me durante sua existência. Desde já, estou grato.

Melquíades:
Todo este predicado só me mostra o quanto seria e não fui. O quanto deveria mas não pude. OLHE PARA MIM! Minha dor, você a sente?

Diabo:
Claro que a sinto. Sempre a senti.

Melquíades:
Como poderia então suportar acordar e adormecer sem pensar em nada a não ser nela? Vejo-a sem vê-la. Quando não está, sou tangará em cortejo . À simples visão de sua silhueta, desfaço-me em farelos. Sei que eu sou o provável culpado. Eu levei a situação a este ponto. À falta de coragem e hombridade, sufoquei-me e busquei o exílio. Mas não o suportei. Tornei a seu lado, aparando sua beleza que desmanchava com cálices diminutos, todos os dias de minha luta e amargura. E quão estúpido fui ao crer que havia reciprocidade!

Diabo:
Para você nunca houve em nenhum tempo, nem com ela nem com as outras.

Melquíades:
Por isso eu quis que ela sofresse. Amaldiçoei-a e parti. Apartei-me de vez por todas dela. Mas ela não sofreu. Nem se deu falta. O tempo passou, e minha sutil permanência que outrora era inconcebível ausente se tornou um retalho de uma capa há muito surrada pela chuva. Agora estou desonrado. Novamente maculado, não consigo suportar mais o fardo de ter o pior dos papéis, o do assassino que é pego com a faca no aposento do rei, do ladrão que não consegue carregar o furto, o do tolo que nem entender a situação conseguiu. Estou definhado.

Diabo:
E aqui estamos. Vamos, o que você precisa? Que eu cante uma canção singela? Recite uma poesia? Com esta neblina... Ausência seria o derradeiro sentido irônico de uma vida estúpida.

Melquíades:
Não tenho mais onde colocar tuas ofensas em meu peito. As lágrimas, todas elas, sulcaram minha face, transformando-a no meu próprio relevo das memórias. Mesmo não vendo, toco por onde cursou toda minha vida de melancolia e insegurança. Mas basta. Deixe que me enlaçarei no alto do mastro e o peso de meu corpo inútil tolherá meu sopro de vida.

Diabo:
O mastro há muito se foi. Talvez nem tinha. Não me lembro.

Melquíades:
Então, dê-me a faca.

Diabo:
Agarra-a.

Melquíades:
Oh, hora derradeira! Oh, destino inconcebível para quem trilhou tantos sonhos quando menor. Quantos caminhos que poderiam desaguar em portos abarrotados de felicidade e compreensão, ternura e alegria! Oh, tristeza que agora me confrange, somente aporto em mares inóspitos e, em casas, nem pouso no alpendre é me dado. Levo comigo esta vida que seria e não foi para algum local onde a lembrança dela não me encontre, onde o perfume não me inebrie. Lá, não encontrarei fortuna, somente os mortos e as almas que se arrastam em uma imensidão de poeira, miséria e tristeza. Mas lá não sofrerei com sua imagem presente, o abandono desordenado de sua serenidade ao alcance do toque de meus dedos fracos. Não, lá não lembrarei de quando estivemos juntos, nem sonharei com a proximidade que nunca existiria, a não ser em meus devaneios.

Diabo:
Mutila-te, vamos, arranca de sua carne toda a nódoa que ela impregnou. Acerta-te em cheio, seja pelo menos honrado, como o guerreiro que você sempre sonhou a sua vida toda. Que este último momento de sua existência seja teu instante de serenidade e quietude buscado desde sempre.

Melquíades:
Não consigo, tenho medo!

Diabo:
Vamos homem, seja varão! Ampute-a de você. Agora!

Melquíades traz a faca junto ao ventre, a ponta coçando à altura do plexo solar . O braço levanta poucos centímetros. Um golpe seco, um suspiro longo. Lentamente, Melquíades curva-se sobre os joelhos. Os olhos mareados apertam, o rosto contorce-se em um espasmo violento. Merda e urina escorrem pelas pernas. Ele levanta a cabeça e olha o Diabo, que continua na mesma atitude desde o inicio, com os braços cruzados sobre os joelhos, olhando, sem tristeza, nem dor, nem alegria. Simplesmente testemunhava. Melquíades encontra este olhar distraído e reúne as ultimas forças. Com um forte puxão, abre uma fenda em direção ao tórax, mas não passa do esterno.

Melquíades:
Drogas...

Ainda curvado, lentamente introduz a mão direita e tateia. Encontra um arfar lento mas vigoroso de um músculo. Encosta sua palma em seu coração. Tenta apertá-lo, tenta sufocá-lo. Mas o maldito teima em bater. Melquíades então compreende o que nunca entendeu. Mas já é tarde. Lentamente, fecha os olhas. O Diabo enfim levanta e vai por sobre as águas.

Diabo:
È uma pena. Nunca conseguiu ver a cor de seu coração.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Sobre um certo Gentil

O senhor Gentil amarra na garupa de sua barra circular um pequeno isopor envolto por uma sacola plástica de supermercado. Calmamente, ele guia com as mãos a bicicleta até o meio fio. Põe uma perna por sobre o quadro, depois senta no selim. Impulsiona levemente com o pé , em direção à guarita, a bicicleta, enquanto com a outra perna força o pedal para baixo, colocando o corpo em movimento. Sua camisa aberta após o umbigo, que nunca se fecha, alça certo vôo, revelando um abdômen enorme, intumescido por anos de serviço público.

Seu Gentil já passa dos 60, olhos pequenos por trás de grossas lentes armadas em uns óculos de aspecto velho. Tudo nele é velho. Sua fala transborda calma e paciência, mas possui um leve teor de resignação, tristeza. Enrola um pouco ao falar, o que transmite uma aparência de embriaguez perene, embora há quem diga que não beba.

É evangélico como muitos da prisão, mas não fervoroso. Pedala lentamente, de forma difícil, com a barriga a atrapalhar os movimentos, em direção ao relógio do ponto. São quatro horas da tarde de uma sexta feira atípica, tranqüila, seguinte à quinta-feira de princípio de rebelião no presídio. Três morreram esfaqueados na briga na ala, enquanto bombas de efeito moral e tiros para o alto, dados pela polícia e pelos agentes penitenciários, ecoaram retumbando pelas paredes velhas da penitenciária, a última calagem há muito escondida pelo mofo e lodo que escorre com as águas da chuva.

Ele entra às 9 da manhã, vem de bicicleta ao trabalho. Acorda em uma casa com a esposa, também idosa, cansada, doente. Trabalha na máquina fotocopiadora do setor, em um cubículo de 1,5 por 1,5. Fica sentado o dia inteiro, ouvindo músicas evangélicas de seu rádio, quando não está com um daqueles "mini-games", jogando pedras. Nunca desliga o som e a música do brinquedo, fato que faz com que ao meio dia, quando todos estão com suas salas fechadas, dormindo, conversando, descansando no horário de almoço, todo o corredor escute o brinquedo do seu Gentil. Ele parece não se importar. Na verdade, ele não imagina que estaria.

No cubículo em que trabalha, junto com outro senhor, há espaço somente para duas cadeiras. Quem chega, precisa, às vezes, chamar o senhor Gentil, de tão absorto que ele está com o videogame, seus dedos rachados e enrugados a apertar os diminutos botões, seus braços pequenos em torno da grande barriga a segurar o brinquedo. Seu Gentil coloca o videogame de lado e atende a solicitação.

Quando lembra, avisa que a sala não possui folhas em branco, que é necessário que tragam as próprias e pede para preencher um pequeno papel com o local de trabalho e a quantidade de cópias efetuadas. Nem sempre está disposto a conversas, às vezes cumprimenta, às vezes não. Possui uma voz engraçada, quase aguda, e um modo de trabalhar as palavras que revela toda sua simplicidade. Por trás de seu semblante cinza, dirige-se ao relógio de ponto e coloca o dedo para averiguação, esperando a luz verde que lhe dará permissão para ir.

Sobe na bicicleta com nova dificuldade, uma perna após a outra. Passa vagarosamente pelo corpo da guarda, arrastando o movimento cíclico dos pedais em uma dança modorrenta, e segue em direção ao pôr do sol, para sua casinha, sua esposa doente e sua televisão, seu jantar, sua cama e seus lençóis puídos.

A morte demora a chegar para certas pessoas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Maresias


Maresias


Desfaça do meu sorriso.
Ele é frágil e simples...

Enquanto.

Singelo ele foi.
Aportou em um mar inóspito;

Embora houvesse faróis em terra,
A escuridão engolia o firmamento.

Nenhuma estrela cintilava.
Sem constelações para se guiar,
Perdido ele estava ...

Então
cansou-se de navegar...

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Temperança


Temperança


Às vezes, nem pareceu muita coisa...
E você... pensa, pensando...
O movimento cessou

E entre os olhares, se cruzam
Respostas, mas quais perguntas?
As que seriam não foram

E ávidos por motivos
Os silêncios se confundem
com sinfonias desafinadas

Enquanto as árvores abandonam
as folhas, lentamente, a derrubar
a vida que era

Continuamos nesta dialética...

domingo, 18 de novembro de 2007

Keith Jarret - The Köln Concert, ECM, 1975


Considerada por muitos como uma das maiores peças deste magistral pianista, este concerto, executado na ópera de Colônia, Alemanha,em 1975, é sem dúvida embasbacante.

Uma apresentação solo dividida em 3 partes mais um "bizz", Keith, que tem uma trajetória ímpar no jazz, tocando com Miles Davies em seus quartetos no inicio da carreira, dividindo com Chick Corea o órgão elétrico e o teclado, transborda emoção e lirismo nesta improvisação.

Após a saída do "Miles Davis Quartet", Keith formou seus quartetos e trios, e sem dúvida uma grande memória da música brasileira faz parte, pois Airto Moreira, o fenomenal, embora esquecido em nossas terras, percussionista fez parte.

Voltando ao "Concerto de Köln", sua técnica ligeira em "vamp", sua levada ora blues/gospel, ora íntima, torna esta experiência auditiva ímpar. Se acompanhada de um bom uísque, em uma noite de domingo como essa, lhe dá boa dose de energia para enfrentar mais uma semana de vida.

O tema de todo o concerto é transmutado em tantos sons e sabores que fica dificil acompanhá-lo.
A energia contagiante da parte nº2, A, é espetacular. Mas o apagar da primeira parte é como um final de um ótimo filme. Fica na memória.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Abismos - Parte I

Um dos problemas graves que somente pude perceber toda a sua amplitude após vir trabalhar aqui na Secretaria de Justiça em Goiânia, mais precisamente no Complexo Prisional, é um dos gigantescos abismos que separam as várias realidades desde país multifacetado. Tanto por que não há quem os ouça, sua história, seus anseios, os degredados neste fim de mundo, tanto por que há os que os ouvem demais, extrapolando e ultrapassando o limiar, que é nebuloso, desse assunto justiça e política criminal, embaralhando conceitos e ideologias, culminando em discursos confusos sem eficácia.

Felizmente o estado de Goiás ainda pode se dar ao luxo de não ter problemas graves de crime organizado, tal como vemos em São Paulo e Rio de Janeiro. Os crimes que aqui ocorrem em sua maioria são ligados a fins econômicos, como tráfico de drogas e latrocínio, roubo dentre outros, enquanto a outra grande parcela é dos crimes contra a vida, quase sempre envolvendo situações de desavenças anteriores, paixões e ciúme, regados a muito álcool e drogas.

É claro que não poderia fazer uma análise acurada sem todo um estudo aprofundado, mas passando os olhos por tantos exames criminológicos que digito, percebo uma situação muito complexa para ser reduzida a simples fatores, como fazem os partidários das várias vertentes do assunto e a mídia em geral.

Por alto, percebo uma grande fusão de vários acontecimentos que trazem as pessoas a este lugar absurdo. Vem quase sempre de famílias esfaceladas, meios pobres e sem nenhuma educação. Conceitos como "alfabetizado", enquanto o próprio preso só consegue assinar o nome, não alteram a situação dela.

Tiveram contato com as drogas na adolescência, como quase todos os adolescentes do país, legais ou ilegais. Alguns utilizaram pouco, outros a vida toda. Muitos trabalhavam e não conseguiram se realizar plenamente na vida. Os impulsos dificilmente são controlados, fruto de vícios e de um ambiente várias vezes miserável pois convenhamos, vivemos em pleno século XXI, enquanto a qualidade de vida de certos bolsões de miséria se equipara à Idade Média.

Imersos em tantos problemas e com nenhuma esperança a não ser a promessa gritada pelos alto falantes dos templos evangélicos do amanhã, tudo o que eles vêem na televisão contradiz a religião. O aqui-e-agora, tão em voga nas propagandas que bombardeiam-nos com produtos todos os segundos, choca com sua compreensão prejudicada do mundo.

Entre o amanhã, ainda distante, e o agora, nada desejável, a tendência quase sempre manifestada é conseguir o necessário para a sua dignidade de qualquer maneira. O que danifica ainda mais todo este processo é a ilusão vendida de que produtos e mercadorias conseguem suprir o vazio da existência.

Se não há condições e trabalho para todos, se os que existem são informais ou mal remunerados, se o divertimento é viver enfurnado em casa a noite acompanhando a fantasia da televisão, ou então, como alternativas, os bares e festas, o bem da dignidade caminha "pari passu" com o delito. A dignidade repousa no outro, no bem do outro, na vida do outro. A felicidade e a dignidade são a festa da qual ele fora impedido de participar várias e várias vezes ao longo de sua vida.

domingo, 4 de novembro de 2007

Desejo x Ética

Há certas situações que nos levam a questionar nossos posicionamentos. Adotamos então uma postura reflexiva. Questionamos, pois algumas sensações novas nos ocorrem e são altamente desejáveis, logo nossos desejos: "será que este caminho é o correto?"

O questionamento do caminho sempre ocorre. É muito difícil que consigamos ser estóicos ao ponto de não nos influenciarmos por nenhum movimento ambiental, que nada nos remova do centro. Nestas horas, ficamos momentaneamente dispersos, equívocos, sonhadores.

Embora seja sedimentado que tudo é fruto de desejos ou impulsos que não temos nenhum controle na maior parte do tempo, não há congruência da ciência ou razão com nossa emoção, o íntimo. É claro que se o desejo é consciente, racional, lentamente cultivado por dias, há um certo controle e também uma grande vontade de realiza-lo. Mas o desejo inicial ainda é alvitre de uma sensação subjetiva que quer um fim, quer fenecer para se completar. Somente com a conjugação do complemento, o desejo se torna uno com teu alvejado e nos inundamos com a satisfação do objetivo alcançado.

O que já sabemos, desde que começamos este duro aprendizado de ser humano, que nem sempre conseguimos o que almejamos, embora queiramos com a máxima de intensidade. E que dói, martiriza, incomoda quando nós o almejamos, e escapa de nosso alcance por "n" fatores ou motivos que, também, fogem do nosso controle.

E quando o desejo parece retumbar em um enorme questionamento ético? "É justo fazê-lo?", "Eu devo ou não devo?", "Vou ferir alguém, vou sair ferido?". Enfim, sabemos conscientemente, racionalmente, que temos algumas opções e quase nenhuma é boa o suficiente para que ninguém se machuque. Este é o momento sob o qual gostaria de deitar os olhos.

Não há resposta padrão para tais perguntas. Não há receita, não há tendência. Ou há, mas são caminhos já trilhados, mapas de tesouro já gastos e que há muito tempo foram desenterrados. Estas respostas, que são ofertadas de forma desinteressada como receitas culinárias inofensivas, são vivências ou, pelo menos, experiências de outras pessoas que tem a pretensão de entender o questionamento e possuírem a eles um fim. Se for o caso, e se o que te satisfaz é justamente esta pílula que aliviará o mal, por ora pode se dar por satisfeito.

Mas é uma responsabilidade muito grande desperdiçar toda esta preciosidade que é a experiência natural e própria do ser seguindo por receitas pré-fabricadas, não testadas, de vias já traçadas, percorridas e abandonadas. Hoje, a segurança que lhe faz tranqüilamente repousar dentro do lar é a mesma que lhe tolhe todo um amalgama de vivências e conhecimentos que estão do lado de fora. É certo que entre escolhas, uma deverá ser feita, mas creio que não podemos nos escusar de escolhe-las, de viver aquele movimento crucial que reúne em si os elementos, os sentimentos, a vida, o desejo, a ética, ou seja, a própria cinemática do desiderato.

Então, mesmo com as dúvidas sobre os anseios, certamente devemos trilhar o caminho da escolha. Um balanço entre a satisfação do desejo e a ética é, talvez, a melhor saída. Não devemos, como já demonstrado, nos privar de todo o cosmo por causa de um controle social ou ético predisposto há séculos e que ainda guia a vida de um sem número de seres. Devemos, sim, tentear toda a bruma, apalpando delicadamente, vagarosamente, suprimindo ou alongando nossas emanações, cotejando a matiz em prol de auto conhecimento.

Não há como sair dessa grande viagem renegando todos os sabores e nuances deste planeta. Por que existimos, devemos nos indagar, devemos buscar, de modo racional ou não, com loucuras ou mente sã. O importante é a busca.

Enquanto não alcançamos a negação total do desejo, talvez ele deva ser utilizado como motor de sua busca. Embora eliminá-lo é um grande passo rumo à iluminação, tenho um certo receio de deixar para trás uma das características mais marcantes do humano.

Em uma sociedade que caminha para um controle cada vez maior de corpos e mentes, rejeitar toda esta vivência que poderia ser alcançada, "a priori", como hipótese inicial, sem nem venturar-se é desperdiçar toda a preciosidade da vida.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Primeiro passo de um novo projeto.

Há algum tempo que tenho em mente publicar algumas idéias, colar algumas influências, esquematizar alguns conceitos e talvez, quem sabe, chegar a alguma conclusão.
Já iniciei um projeto como este antes, mas, talvez por ter uma personalidade um tanto quanto melancólica, não vingou. Também era bem mais imaturo do que ainda sou.

Então estou dando a mim mesmo mais uma chance de me expressar.

Tenho uma formação científica e cética. Hoje busco um pouco mais de improviso, um "flavour" de jazz em meio à toda caoticidade do meio.
O que eu quero é expor o 'caldo' inteiro e as partes que o compõe, sem a pretensão de demilitar tudo muito bem, pois a individualidade das partes, creio, só se manifesta no conjunto, dentro ... ali, entre a névoa e o limite...

Pois bem, minha historia será contada ao longo do ano, e vou compartilhar um pouco do que gosto, alguns pensamentos e idéias.

Exposto, procuro me ouvir e entender.