sexta-feira, 27 de junho de 2008

razorsharp bubbles


É comum observarmos, no cotidiano, discussões acerca do sentido da vida, e como estas discussões inevitavelmente terminam encilhando os argumentos sob o manto de teorias várias: científicas, morais, religiosas, individuais, etc. A aparente manutenção do capitalismo-liberal democrático contemporâneo, pós-queda Muro, como o método realizado para direcionar economicamente a população humana transmite uma mensagem bastante clara e direta: a fórmula da melhor sociedade foi finalmente encontrada.

Não há mais necessidade de embates filosóficos. Decerto que o modelo ainda é falho, pois humano, mas só necessitamos de ajustar suas condições: pequenos reparos aqui e acolá e tornaremos a sociedade mais justa, tolerante, etc. Aparentemente, com o fim das utopias, não existem antagonismos suficientes para se neutralizar este modelo que, aos olhos do populacho, transmuta-se como o verdadeiro eldorado outrora sonhado. Necessário é trabalhar, receber, poupar, investir, especializar, e, se fores esperto o suficiente, teu assento olímpico está reservado.

Embora esta visão possua força descomunal, há alguns antagonismos muito fortes inerentes ao sistema que podem solapar tais instituições do pedestal onírico na qual situam-se. Há, entretanto, um grande porém: é necessário um grande estofo para que possamos, inicialmente, entender como funciona e qual o sentido da vida. É justamente aqui que podemos entrever um dos principais pulsares que emitem a episteme necessária para tal realização: o pensamento alargado.

Se algum dia eu pudesse humildemente escolher algumas palavras que definissem a espécie humana para um extraterrestre, esta palavra seria só uma: diversidade. Para todo e qualquer sentido, diversidade. Esta diversidade, que é uma característica da energia vital que nos anima e se dispersa pelo pequeno torrão de matéria que circunda a terceira órbita interna de nosso sistema solar, é início da discussão dos sentidos.

Diversidade: possuímos culturas diversas, que geram seres únicos, possuídos por espíritos deduzidos de pequenas estruturas distintas; indivíduos que ao trilhar o caminho inverso, do gene à humanidade, através de famílias, grupos, organizações, imitando a sua própria biologia (teorizada por eles mesmos), transformam toda a cultura e assim, ad aeternum se possível, seguem em mutação.

O antagônico da diversidade é a uniformidade. O uniforme enquadra, disciplina, apara, apresenta. A uniformidade trabalha mais efetivamente as forças a desiderato fim que o caos inerente à diversidade. Na esfera dos conceitos, dos sentidos, do pensamento, a afiada uniformidade imposta penetra e transforma as pessoas em portadores de discursos obsoletos e conceitos antiqüíssimos.

O crucial dos conceitos e discursos é que os mesmos realizam o sentido pessoal de cada um acerca de tudo, principalmente sobre o sentido da vida do portador. Deste modo, conceitos obsoletos e discursos antigos limitam o espírito do sujeito. Contido, o sujeito facilita o processo de dogmatização em sua vida, de sua energia; aprisiona-se a uma pequena, mas satisfeita, bolha de subsistência.

O antídoto a tal movimento é o que Kant, seguindo a linha de Rousseau, realiza com o conceito de pensamento alargado. O pensamento alargado poderia ser discorrido largamente. Por ora, seria necessário entender que o ânimo que procura expandir as fronteiras que limitam o indivíduo a todas as suas camadas presentes, rompendo com sua esfera segura de existência, irrompe-o no vazio, no caos, no novo, no descoberto. Transmuta de tal forma o sujeito que, ao tentar retornar à sua situação anterior, dificilmente se satisfaz com o pouco que ele possuía, o pouco que buscava. Descobre, de forma nietzscheana, os antigos falsos-ídolos e os despedaça defronte a si próprio.

Dínamo expansivo que alarga o pensamento e dilata diretamente o próprio sujeito que pensa. As amarras que ante seguravam-no desatam-se. Realizado e realizando-se, ele aprisiona agora novos conceitos e discursos, possui novos pontos de vista. Consegue, se não compreender, respeitar o outro e amar o Outro, estes símbolos que a psicanálise desvenda tão bem de nossos inconscientes. Criamos um laço empático, maximizamos nossa serenidade e a sabedoria.

Esta passagem do singular para o plural, das concepções ínfimas às mais amplas e complexas, atua afastando o sujeito de seu ponto de partida, sem contudo renegar a sua essência histórica individual. O verdadeiro espírito do mundo é aquele que consegue mudar permanecendo, em essência, o mesmo, agregando experiências e transcendendo a patamares cada vez mais altos em relação aos que não se aventuram e mantém, embora até com uma vida muito diversa, a cabeça e os pés no mesmo chão que nasceram.

Ascender a esta situação requer uma dose muito grande de busca e liberdade. Embora estes pressupostos, a liberdade e a possibilidade da busca, estejam hoje ao alcance de parte infinitamente maior do que estavam em tempos pretéritos, não observamos uma tendência de igual acréscimo à quantidade de sujeitos com espírito livre, sedentos a ampliar sua esfera de vida.
Trata-se, principalmente, do custo alto que é cobrado ao se alargar o pensamento: ampliando seu palco, nos é cobrado ao não se aceitar mais, com tanta tranqüilidade, dogmas.

Grande parte do sujeito é formada em épocas que nem consciência de si mesmo ele possuía. Ao assumir o leme, ele não sabe de quais madeiras foi feito seu casco; os cardamos da vela, são de cânhamo ou seda? As cartas marítimas que apontam tais ilhas, não estão invertidas? Deste modo, somente a experiência de velejar pode destruir concepções (os dogmas) já recebidas ao iniciar a viagem.

Concluindo, o pensamento alargado favorece a diversidade, tecido da existência, produzindo seres mais conscientes de si e dos outros. A vida pode ser expressa em toda sua amplitude possível, a esfera do existir se expande, o prazer é advindo é, imensuradamente, melhor. Este é meu ponto de vista sobre, entre tantos, como deve se viver a vida: a busca incessante de uma amplitude maior de experiências, sensações

Por último, duas observações (mais à guisa de questões): a diversidade não trabalhará a favor da uniformidade, ou seja, servindo de substrato para ser aprisionada em um novo modelo passível de mercantilização?

E ainda, em relação ao espírito alargado: tomando-se consciência da existência deste modo de viver mais amplo, serão muitas as pessoas a sair de sua segurança para trilhá-lo?

Dúvidas existenciais que, somente com o tempo, poderemos responder.



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quarta-feira, 25 de junho de 2008

Wu - Hsin

Cadê o sol que estava aqui? =)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

\o/



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terça-feira, 13 de maio de 2008

F19.4 + F20.9

Caro Sr. Koppas

Encaminho as cópias dos prelados da lei em relação aos afetos que atingem toda a população alienígena. Lembramos que tais dados, embora revestidos de autonomia psicanalítica, desenvolvem se em um ambiente eutrófico único, possibilitando a evolução das espécies de conceitos metafísicos, que buscarão amparo melódico nas brumas cadavéricas das pequenas árvores.

Sendo assim, acima de tudo, primamos pelo reconhecimento da autonomia bicameral federativa das republiquetas empoeiradas, situadas ao ermo esquerdo de Rivendell. Não confundir com a ditadura ideática ao norte do Sino Divisor. Estas sim, podem ser consideradas como plenas defensoras totipotenciais da genética da pedra.

Ainda que as populações destas chapadas megalotróficas atenuantes possam ser considerados como detentoras soberanas das mangas-espada sauipenses, muita discussão enfoca-se no aspecto material-espirutualista do kafkianismo burocrático. Claro que nos posicionamos de forma peremptória a favor dessa negação positivista lírica, redacionista E expulsionista.

Outrossim, cremos, cientificamente baseados na ecologia dos besouros, da densidade apriorística zeppelin. Não obstante, quem nunca poderia sujeitar-se trompeticamente às milhas percorridas por eles?

Assim sendo, o embrião ambiental alcoólico herbáceo ressuscitará o prol de uma sociedade profundamente hemipartidade e bucólica.

É claro que tudo isso não passa de algumas boas observações fundamentadas de maneira responsável que visam, eticamente, à finalidade única da sublevação harmônica próprio-senciente. Por isso, caro amigo de copas, tenha isto como verdade fé certificada para sua vida besta.

Ou seria o contrário ?

Haikai do Instante

Também pensando
"estas coisas não ocorrem"

Ocorreram.

De pronto,
sem momento
de antecedência.

O instante:
permutou sua essência da eternidade
pela existência no presente.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Political Compass

Há muito tempo atrás, e falo sério, já que acabo de ler uma reportagem em que falam que "na segunda metade dos anos 90, o ICQ era o MSN e hoje não passa de peça de museu da internet", uma das coisas mais legais da internet eram aqueles testes que você fazia e falavam com o que você parecia (um animal, um personagem de um livro, um carro, um artista etc).

Bom, acho que isso ainda existe não é. Eu é que não faço mais =D

De qualquer modo, esbarrei em um bem legal (confesso que gostei bastante do resultado). Chama The Political Compass e faz uma troça com seus ideais politico-sociais. Não é fácil manipular o resultado, algumas perguntas são capciosas, o que dá uma boa idéia de seu "alinhamento".

Bom, meu resultado saiu assim:


Assim, um libertário de esquerda? Quê isso, o menino nem anarquista é =P

Na página eles ainda tem uma comparação com alguns dos atuais líderes políticos e como você se sairia perto deles.
Dalai Lama? Sério, gostei desse brinquedinho!

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Now playing: Megadeth - Reckoning Day
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Free Tibet

Free Tibet

terça-feira, 29 de abril de 2008

Koan

O monge Nagarjuna era um grande conhecedor do buddhismo. Certa vez, seu mestre, Kapimala, ganhou uma jóia preciosa de outra dimensão, do reino das nagas.

Nagarjuna: Esta jóia, brilhante e mágica, tem forma ou não?
Kapimala: Você ainda está obcecado por dualismos, "com forma" e "sem forma". Por que você não percebe esta jóia diretamente? Ela não tem forma, nem é sem-forma. Além disso, ela nem mesmo é uma jóia.

Nagarjuna percebe a forma da não-forma, a jóia que não é uma jóia, e realiza o caminho.

(...)

Tenho que estudar...
Tenho que trabalhar!
Tenho que viver.

Energia que se expande e se contrai alucinadamente.

absorve ...
... EMITE!

Sou.

Consciência momentânea.
Que trafega
entre a montaria
e o cavaleiro.

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quarta-feira, 9 de abril de 2008

Dona Divina

Dona Divina.

Quente. O ar condicionado não funciona direito. ‘Quinze pras quatro’ de uma tarde modorrenta de quarta-feira. Fome. Mas ainda assim, tranqüilo, sereno. Estudando Direito Penal. “O princípio da diginidade da pessoa blá blá blá...” Soa como ironia.

Ela entra.

“Boa tarde. Gostaria de falar com o Belém.”
“O Dr. Belém só atende às quintas e às segundas. Amanhã ele estará aqui. Eu posso te ajudar?”
“É que eu gostaria de saber por que meu filho teve pedido de semi-aberto duas vezes mas não sai daqui.”

O Dr. Belém é visto como responsável por muitos ficarem, não “passarem” no Exame Criminológico, mas isso é cotidiano. Se existem heróis nessa m* de mundo, o Dr. Belém é um deles. Peço o nome do filho, olho o prontuário, leio para ela as conclusões do último laudo, explico que o laudo dele foi razoavelmente bom e que ele poderia ter saído. Mas já me lembro e pergunto:

“Qual foi o delito (eufemismos....) dele?”
“Latrocínio.”

Engulo seco. Tudo que não gostaria de ouvir. “Latrô”. 157, §3. Crime complexo, que envolve tantas variáveis e componentes quanto grãos de areia nesse mundo. É claro que você pode simplificar as coisas, reduzir, rotular o “delinqüente”, dizer que é desumano... O Bush também comanda a América e quase o mundo, a desigualdade social reina galopante, e nem por isso as coisas certas são feitas ...

Negra. Cansada. Olhos marejados, mas ela não chora. As lágrimas teimam em tentar sair, mas ela não chora. Fica em pé. Altiva. Pobre. Apanhou muito nessa vida. Já sofreu demais. O sofrimento humano não tem limites.

Como explicar a esta senhora que , em se tratando de latrocínio, há uma notável resistência por parte da ‘justiça’ goiana de conceder a progressão? Que, embora não seja comum, há laudos que são bons e que os presos não a tem? Como dizer as palavras mais simples: “Senhora, seu filho está f*...”

“Moço, é que ele caiu com 18 anos, estava com emprego arrumado de garçom; foi no final de semana, no início da semana ele ia trabalhar. Há oito anos que eu puxo cadeia com ele. Todo domingo eu to aqui. Eu sei que ele tem que pagar, mas ele também tem que sair. Ele perdeu a juventude dele toda aqui.”

“Eu sei Dona Divina” é o que eu penso e falo. Concordo com ela. Tento reconfortar. Mas como reconfortar alguém que vive oito anos de prisão, sem estar presa? É claro que ela desconhece um princípio basilar do Direito Penal, constante no artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso XLV: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado”

Como fica bonito assim, escrito, na Constituição...

Oito anos de prisão para esta mãe, e bem possível mais. A possibilidade de ele sair é mínima. Tento manobrar as palavras, não me dou nada bem com a esperança, e não posso dá-la nunca a alguém que tenho absoluta certeza que já a perdeu e não quer reencontrá-la. Tento não ser incisivo, tento “levantá-la”, tento dizer dos meios jurídicos possíveis para contornar esse impasse...

Tento...

“Moço, é que ele só errou uma vez moço. Era novo. Agora, ta usando droga, tá mudado. Ele é um menino tão bom. Eu que sou mãe eu sei; eu vejo ele todo domingo, converso com ele. Falo pra ele ficar bem. Mas ele não fica. E não sai daqui.”

Converso longamente com ela. Peço pra que ela volte amanhã, para conversar pessoalmente com o Dr. Belém, ver o que ele poderia fazer. Mas eu o conheço. Ele nunca iria mudar um laudo para ajudar qualquer que seja. Sempre ético. O que ele vê, está ali. É a vida dele que está no documento.

Dois heróis. Dona Divina e Dr. Belém. Antagonismos.

Ela sai pela porta de minha saleta.Os grandes olhos negros marejados.
E o pior que ela não chora.

Eu? Choro todo o caminho de volta para casa....


“Pick me up, love, from the bottom.... to the top love...
Everyday...”

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Dreams

Como se tranqüilamente houvesse entrado em meu sonho... vívido. Vozes serenando, a música transmutando-se e a neblina, que outrora partilhava comigo sua existência, num par íntimo indivisível, dissipou-se.

transcendência ...

Ali, o passado assomara no presente: olhares a lugares que nunca visitei me acertavam com tamanha intensidade que, instintivamente, dobrei meus joelhos... Estive certo de que o golpe que separaria minha cabeça, tamanho peso que carrego, de meus ombros estava próximo. Recolhi-me em meus pensamentos e aguardei...

não veio...

Como tudo que não veio durante minha vida e eu aguardara ansioso
Minha faculdade ficou no lugar, e meus demônios tornaram a me espicaçar,


Imóvel. Ruminando a constante inércia em que me aprisiono. O eterno ciclo do alarmar/acalmar. Excitação. Ausência. O estímulo que, omisso, foi rememorado em longas e calmas tardes de domingo.

Por baixo das camadas:
folhas,
papelescos,
papelotes e
perfidez


A certidão carcerária ...
Ausente?
Certificado e com fé!

Um passo para sair deste sonho. Um mísero passo atrás. Ou a frente, quem saberia dizer se o momento não o era?

Enquanto todas estas sensações perpassavam aquele indivíduo, o corpo suando indiferente à mente, o espírito atravessara a ponte e foi brincar nas piscinas douradas do pôr-do-sol.

Onde, os campos de trigo; carreados pelos bicos dos pássaros, açoitados pelos humildes fazendeiros: grãos se perdem entre a paisagem metodicamente geometrizada dos tablados de plantações.

As pequenas casas à beira-mar, com roupas estendidas, alvas, em varais improvisados nas janelas, onde por fundo, o monte nevado observa...

sabiamente,
agredido,
mutilado,
sozinho....

quinta-feira, 6 de março de 2008

Lee Miller - Photo

30th April 1945
Lee Miller, Dead German soldier floating in canal Dachau, Germany


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Now playing: John Coltrane - Cousin Mary
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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Abismos - Parte II

A cada dia, mais e mais notícias sobre a situação calamitosa da "segurança" no país e, em especial, nosso estado. Espocam flashes sobre execuções, grupos de extermínios, estupros, assassinatos cruéis, montantes infindáveis de drogas apreendidas e mais e mais a contagem de corpos chega a números assustadores.

Em Goiás, estamos atravessando por períodos turbulentos. A mídia goiana, seguindo a postura das tendências da mídia nacional, cada dia reserva mais espaço para o noticiário policial. Com o aumento da atenção sobre o sistema prisional do estado, mais e mais absurdos vêm à tona (casos como o das mulheres e adolescentes presas no Entorno, os grupos policiais de extermínio, dentre outros). Estas realidades, que em nenhum momento desaparecem se não estão em voga na mídia, pré e pós existindo após o circo midiático, denotam a sistemática violência e as torturas do mundo atual, o que pode contribuir de modo positivo para a mudança das instituições goianas.

Ocorre que a postura questionadora do "por que" de tudo isto não ocorre, de ambos os lados, do que articula e do que recebe o discurso. Do ponto de vista da mídia, ela tem a dúbia postura "neutra" na transmissão dos fatos. Do lado oposto, os receptores não denotam nenhuma postura cética ou crítica ao discurso que recebem, situando-se como ponto final de um caminho que deveria ser de mão-dupla.

A questão se torna cada vez mais complicada quando entram em jogo as posturas do Executivo (responsável pelas cadeias e acatar as ordens) e do Judiciário (o famoso "quem manda prender"). O primeiro, sempre caduco por falta de verbas, dá as mais variadas explicações (licitações estão em andamento, isso não é isso, é aquilo etc) que não deixam de ser verdade pois a burocracia ata tudo e todos em um mundaréu de amarras e algemas. Já o Judiciário, isolado da realidade, em seus palácios e tribunais esplendorosos, também reclama de falta de recursos (humanos, diga-se de passagem). E assim, cada qual vai lutando neste palco.

O que eu continuo nao concordando, em hipótese alguma, é com a postura do Judiciário na questão. Lendo hoje o jornal O Popular, vejo que os juízes do Entorno dizem que a situação é calamitosa, a prisão faliu, não recupera, reeduca ou retorna o indivíduo a sociedade (coisa que ouvimos desde o início da instituição), etc mais etc mas lembram que a superlotação nas cadeias é responsabilidade do Executivo.

Oras, com todo o sistema de penas alternativas, se houvesse bom senso dos juízes , deixassem esta mentalidade tacanha e agrária desse estado bunda que a gente vive, uma grande parte das pessoas nem passaria na porta da prisão. Jogar a culpa nas mãos do Executivo é passar a bola pra frente e nada acontece. O Judiciário necessita de uma postura ativa neste processo. Esse jogo de empurra empurra nada leva...

Mas há outro porém. A Lei de Drogas (Lei nº 11343/06) veda absolutamente a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos (penas alternativas), alem do tráfico ser considerado crime hediondo (como se colocando um rtulo algo mudaria). Acontece que muitos vão parar pela primeira vez na porcaria da CPP e depois no Cepaigo com o que? 18, 19, 20 anos, porque traficaram uma quantidade de drogas que as vezes é absurdamente ridícula. Às vezes 3 anos, 3 e meio de condenação (perfeitamente substitutível por uma restritiva de direitos).

Ocorre que quaisquer 7 meses dentro do Inferno o torna um demônio...

Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate

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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Bushido


Ato IV, Cena II


Caminhava há muito tempo sem olhar para trás. A cabeça baixa, os olhos percorrendo as folhas, a terra, o musgo que permanecia como há séculos assentado por sobre as árvores. A folhagem bailava ao som da música invisível orquestrada pelo vento; entrava pelas copas das árvores e percorria, do alto até o chão úmido, o caminho que os espíritos fazem quando vêm às florestas, em noites estreladas, para resolver suas pendências de vidas passadas.

Melquíades, absorto, não percebe desta vez a presença do Diabo. Este olha aquele de longe, inquirindo sobre as razões de sua absoluta crença da proximidade do fim. Perscruta os pensamentos de Melquíades, e encontra uma confusão de certezas e dúvidas, como se existissem dois entes ou mais dentro daquele corpo.

Enquanto caminha, Melquíades sabe que o fim está próximo, palpável. Lembra-se dolorosamente dos odores e nuances do início da sua vida, agora que já não os percebe com facilidade. Sua respiração é difícil, sua garganta constringe seus pensamentos e, muitas vezes, sua visão. Quando se cansa, ele apóia-se em uma árvore, sua mão percorrendo e tateando os pequenos ramos do musgo que ali habita. Pressionado pelos dedos, o musgo percebe a triste energia incontida de Melquíades que flui para si, e sente pena do humano.

O Diabo atrás vai, sem alarde, a uma distância segura. Alcança a aura pensativa de Melquíades, e sussurra em seu pensamento: “Meu filho, é natural estar com medo”. Melquíades se conforta por um instante. Imagina que seus receios são infundados, e expulsa, mais uma vez, a sombra que ronda o seu eu, para longe. Sente um frio percorrer seu braço, apoiado a árvore. Olha o tronco da castanheira centenária de cima a baixo. Imagina esta árvore nascendo, sua luta por entre as folhagens, os insetos que a devoraram, a busca pelo sol, suas raízes penetrando mais profundo do solo arenoso da floresta a cada dia, esforçando-se para encontrar a água da vida.

Percebe que a aquela árvore viveu toda a história de sua floresta, sua colina, os murmúrios do córrego que descia mais adiante (Melquíades também o ouvia) que banhava suas raízes indiretamente. Ouvira cantos de centenas de gerações dos mais variados e lindos pássaros, o pio noturno do bacurau, o grito dos gaviões de rapina, o encanto da dança dos tangarás. Sabia que aquela árvore conhecera muitas irmãs que tombaram em tempestades ou acometidas por doenças, vira muitas nascerem e agora buscarem o alto do dossel para se espraiarem nos raios solares.

Ele então soube da imensa distância de seu conhecimento e de seus valores. Soavam mesquinhos ao lado do ser centenário que assomava a sua frente. Melquíades prostra-se e chora baixo, silencioso, como que respeitando a música daquela floresta.

A castanheira desperta de seus sonhos de árvore com o incômodo de algo à sua raiz e olha abaixo. Vê o que parece ser um primata. Não... engana-se, é um daqueles seres humanos que por aqui são, graças aos deuses ela reflete, tão raros. Já ouvira falar das lendas destes pequenos, que habitam algures pelo mundo, de pequenas mãos segurando objetos violentos que rasgam e sangram os seus até a morte, desnudando a face da Mãe até deixá-la irreconhecível.

A princípio, olha com rancor e ódio. Mas então capta todo o sofrimento do animal. Embora se gabe da sua racionalidade e de seu progresso, vive aprisionado pelos seus medos e pesadelos, a vida com maestria regida por superstições da sua ciência quando muito, pois a maioria vive na fé cega das religiões que nunca foram os melhores exemplos de compreensão e compaixão. Habitam pequenas covas que entulham de coisas sem importância, enquanto se matam para manter um estilo de vida que aos olhos de todos é infeliz, roto, vazio, estúpido e auto-destrutivo. Invejam-se, ó sim, como se invejam dos outros e deles mesmos, e vivem numa eterna incompreensão consigo e com seus pares. A castanheira, ao final, sente pena de Melquíades.

O Diabo está parado. Sabe o que a castanheira e o caminhante pensam. A primeira tem compaixão do segundo. Este, ao contrário, está imergindo lentamente em sonhos densos, nublados, sem esperança. Espera até que o pequeno sujeito aos pés da árvore respire mais profundamente. Vê-o enrodilhado como um cão de rua, ao abrigo das raízes tabulares, e lentamente penetrar no interior do mundo dos sonhos mais profundos.

Só assim Ele se aproxima...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Bares - Fratelli Pizzaria

Inaugurando mais uma seção do blog, vou começar agora a avaliar os bares e restaurantes que eu vou (novamente, minha pretensão me derruba!). Na verdade, é mais uma forma de compartilhar experiências e não esquecer das coisas!

Fratelli Pizzaria
(Endereço: Av. T5, esq. com T65, St. Bueno)

A Fratelli substituiu (com muita tristeza e pesar) um dos melhores botecos que eu já fui em Goiânia, o Dr. Cevada. O Dr. Cevada tinha o melhor torresmo da cidade (sem igual, vinha quentinho, crocante, nada parecido com estes "baconzitos" que encontramos pela cidade), com muita carne de porco em uma porção muito bem servida a cinco reais! Fora dizer que, após derramar um caldinho de um limão bem suculento, ele crepitava a alto e bom som. Sem dúvida, já passei momentos espetaculares no Dr. Cevada (que o diga o Aldão com sua dor de cotovelo heheh)!

Prós: Não cobram 10% (A Bohemia está aceitável a R$4,00). O cara, que eu acho que é o dono, parece o "Dr. House" e a pizza, dizem as más línguas, é boa.

Contras: A variedade de petiscos é nula e cara. O bar é vazio (se bem que isso é um elogio pra mim). O espetinho é muito caro, com pouco acompanhamento. Em suma, eu espero que nunca mais eu volte lá =D

Nota: 4.5

Ah... que saudade do Dr Cevada....

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Michel Foucault – Parte I

“Não me perguntem quem eu sou e não me digam para continuar o mesmo: esta é uma moral de estado civil.” Michel Foucault

Em 1975, o jornalista e escritor francês Roger-Pol Droit entrevista seu conterrâneo Michel Foucault. Foucault, à época, já é lenda. Uma incógnita, a descontinuidade enfeixada em uma personalidade única e multifacetada, pertencente a e, por que não, a liberdade por excelência. Foucault acabara de publicar Vigiar e Punir, um dos seus livros mais conhecidos e, nesta série de três entrevistas, disserta, expõe-se, esconde, brinca, joga a respeito de seus pensamentos, literatura e sua vida e obra, numa das raras vezes em que Foucault se sente a vontade para falar sobre si. Estas entrevistas são reunidas e publicadas por Droit no livro Michel Foucault, Entrevistas (Editora Graal, 107 páginas). A introdução feita pelo autor do livro é uma pequena obra de arte. Versa sobre o sujeito principal de uma peça, a sua própria vida, encenada com violência e paixão, nas palavras de Droit:

“Uma criança frágil se entedia entre duas guerras em Poitiers, em meio á vida abastada de pessoas eminentes como são as da sua família e, notadamente, seu pai, cirurgião e professor de anatomia na Escola de Medicina. Um aluno muito dotado vai para o liceu Henrique IV preparar-se para a Escola Normal Superior. Em 1948, um estudando da École Normale Supérieure, homossexual e membro do PCF tenta suicidar-se e parece beirar a loucura. Um filósofo apaixonado por psicologia, abandona a Fundação Thiers pela Universidade de Lille. Na Suécia, um adido cultural surpreende a pacata cidade de Uppsala dirigindo um jaguar. Ao voltar de Hamburgo, via Varsóvia, um jovem médico, dândi feliz e provocador, ensin em Clermont-Ferrant. O anti-comunista trava uma disputa com Roger Garaudy. Um membro do júri da École Normale d’Administration, participa da elaboração da reforma Fouchet.
Todos eles se chamam Michel Foucault...”

Sua vida e obra, absurdamente caóticas, prolíficas e descontínuas, foi interrompida pela Aids em 1984, aos cinqüenta e sete anos. Muito pouco se sabia a respeito da doença à época (o vírus fora descoberto em 1983 pelo Institut Pasteur), e Foucault guarda a triste memória de ser um dos primeiros casos “célebres” a falecer.

Abaixo, um excerto deste livro, o que mostra a clareza e o brilhantismo das idéias de Focault. Os grifos e itálicos são uma petulância minha.

" Dos suplícios às celas"

Supliciava-se (o corpo) com aplicação, seguindo um código preciso de torturas. Marcavam-se, amputavam-se, deslocavam-se corpos. Da fogueira ao patíbulo, do pelourinho à forca, o sofrimento físico era encenado com um fausto exemplar. Para que ninguém o ignorasse... Tudo isto chegou ao fim, de modo bastante brusco, na segunda metade do século XVIII.

O barulho monótono das fechaduras, a sombra das celas ocuparam o lugar do grande cerimonial da carne e do sangue. Não se exibe mais o corpo do condenado:ele é escondido. Não se quer mais assassiná-lo: ele é adestrado. É a “alma” que é reeducada.

A mudança ocorreu em menos de um século, no conjunto da cultura ocidental. Certamente, a Idade Média não ignorava os cárceres nem as masmorras. Porém, continuava estranha a este sistema rígido de detenção sistemática, regulamentada, minuciosa, que se estabelece entre 1780 e 1830: a Europa e o Novo Mundo cobrem-se de penitenciários... A este “nascimento da prisão”, Michel Foucault restitui o sentido e o alcance.

Basta dizer, com os “reformadores” do século XVIII (Beccaria), que a “humanização”, os “progressos do gênero humano” explicam e justificam este transtorno do sistema punitivo? Por detrás dos álibis dos ideólogos, Foucault desnuda o jogo complexo dos poderes.

O estardalhaço dos suplícios e o silêncio da reclusão não se opõem, com efeito, como dois elementos isolados, dois fenômenos superficiais. Indicam, sim, a passagem de uma justiça a uma outra, uma mudança profunda na própria organização do poder. O criminoso, na monarquia absoluta, desafia o poder do rei e este poder o esmaga lembrando a todos, com estardalhaço, sua força infinita. para os teóricos das Luzes, o homem que comete um crime rompe o contrato que o liga a todos os seus semelhantes: a sociedade pó afasta e o adestra, regulando com precisão cada fato, cada gesto e cada momento da vida carcerária.

Pois a prisão é uma regulamentação feliz do espaço: o olhar do vigia pode e deve tudo ver. Uma regulamentação do tempo, cuja utilização é fixada a cada hora. Uma regulamentação dos gestos, das atitudes, dos mínimos movimentos do corpo.

Esta disciplina, a prisão não a inventou. Com um luxo de referências e de documentos, Foucault mostra como, durante toda a Idade Clássica, as técnicas de adestramento do corpo foram refinadas, unificadas, sistematizadas. Elas já existiam, esparsas, isoladas. Mas não formavam esta rede de procedimentos aperfeiçoados que, da escola às Forças Armadas, passou a controlar o corpo e suas forças.

A prisão, não é, então, única: ela se estabelece no conjunto da sociedade disciplinar, esta sociedade de vigilância generalizada que é ainda a nossa. “O que há de surpreendente, escreve Foucault, se a prisão se assemelha às fábricas, às escolas, às casernas, aos hospitais, que todos eles se pareçam com as prisões?”.

Para compreender sua organização comum, Foucault esboça nesse livro uma “anatomia política”, uma “microanálise” da ação de poder sobre os corpos. Como se organiza, na prisão e fora dela, o jogo dos poderes? É o que esta entrevista, entre outras, torna preciso.

Roger-Pol Droit: A prisão, em sua função e em sua forma contemporânea, pode passar por uma invenção repentina e isolada, ocorrida no final do século XIX. Você mostra, ao contrário, que seu nascimento deve ser realocado numa mudança mais profunda. Qual?

Foucault: Ao ler os grandes historiadores da época clássica, pode-se ver o quanto a monarquia administrativa, tão centralizada, tão burocratizada quanto a imaginamos, era, apesar de tudo, um poder irregular e descontínuo, deixando aos indivíduos e aos grupos uma certa latitude para burlar a lei, para se acomodar aos costumes, deslizar entre as obrigações,etc. O Antigo Regime arrastava consigo centenas de milhares de ordens jamais aplicadas (lettres-de-cachet, As verdades e as formas jurídicas), direitos que ninguém exercia, regras às quais massas de pessoas escapavam. Por exemplo, as fraudes fiscais mais tradicionais, como também o contrabando mais manifesto, faziam parte da vida econômica do reino. Em suma, havia entre a legalidade e a ilegalidade uma perpétua transação que era uma das condições de funcionamento do poder nesta época.

Na segunda metade do século XVIII, este sistema de tolerância muda. As novas exigências econômicas, o medo político dos movimentos populares, que vai se tornar lancinante na França, depois da Revolução, tornam necessário um outro esquadrinhamento da sociedade. Foi preciso que o exercício do poder se tornasse mais fino, mais estreito, e que se formasse, desde a decisão tomada centralmente até o indivíduo, uma rede tão contínua quanto possível. Trata-se do aparecimento da polícia, da hierarquia administrativa, da pirâmide burocrática do Estado napoleônico.

Já bem antes de 1789, os juristas e os “reformadores” haviam sonhado com uma sociedade uniformemente punitiva, onde os castigos seriam inevitáveis, necessários, iguais, sem exceção nem escapatória possíveis. De repente, estes grandes rituais do castigo, que eram os suplícios, destinados a provocar efeitos de terror e de exemplo, mas aos quais muitos culpados escapavam, desapareceram diante da exigência de uma universalidade punitiva que se concretiza no sistema penitenciário.

Roger-Pol Droit: Mas por que a prisão e não um outro sistema? Qual é o papel social do confinamento, do enclausuramento, dos “culpados” ?

Foucault: De onde vem a prisão? Responderei: “Um pouco de toda parte”. Houve uma “invenção”, sem dúvida; mas invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, de identificação dos indivíduos, de esquadrinhamento de seus gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isto, desde os séculos XVI e XVII, nas Forças Armadas, nos colégios, nas escolas, nos hospitais, nas oficinas. Uma tecnologia de poder fino e cotidiano, do poder sobre os corpos. A prisão é a última figura desta idade das disciplinas.

Quanto ao papel social do internamento, é necessário buscá-lo do lado deste personagem que começa a se definir no século XIX: o delinqüente. A constituição do meio delinqüente é absolutamente correlativa á existência da prisão. Procurou-se constituir, no próprio interior das massas populares, um pequeno núcleo de pessoas que seriam, por assim dizer, os titulares privilegiados e exclusivos dos comportamentos ilegais. Pessoas rejeitadas, desprezadas e temidas por todo mundo.

Na Idade Clássica, ao contrário, a violência, o pequeno furto, a pequena fraude eram extremamente correntes e, afinal de contas, toleradas por todos. O malfeitor conseguia, ao que parece, fundir-se muito bem na sociedade. E, se lhe acontecesse ser preso, os procedimentos penais eram expeditivos: a morte, as galés para o resto da vida, o banimento. O meio delinqüente não tinha, então, este fechamento sobre si mesmo, que foi organizado essencialmente pela prisão, por essa espécie de “molho” no interior do sistema carcerário, onde se forma uma microssociedade, onde as pessoas encetam uma solidariedade real que vai lhes permitir, uma vez fora, encontra apoio nos outros.

A prisão é, então, um instrumento de recrutamento para o exército dos delinqüentes. É para isto que ela serve. Fala-se, há dois séculos: “A prisão fracassa, pois ela fabrica delinqüentes”. Eu diria, antes, ela é bem-sucedida, pois é isso que se lhe requer.



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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

"A estrada só existe quando a percorremos."

Querido primo:


"A estrada só existe quando a percorremos." Esta é, por certo, uma frase que guarda ressonância com muitas outras que tratam do mesmo tema. Na verdade, até parece que foi dita várias vezes ao longo da história e literatura humana, em todos os cantos que trouxeram o tópico à tona. Eu humildemente a lancei mão na viagem que eu e minha namorada fizemos no final do ano para passarmos o reveillon na magnífica Pirenópolis.


Saímos de Goiânia à tardinha, aproveitando ainda a iluminação natural do sol nos dias longos de nosso verão. Ainda estava claro quando saímos, o escurecer só chegando após as sete e meia, sete e quarenta. Em uma das curvas mais acentuadas, já com bastante chão andado, ponderei sobre como gostava de dirigir a noite, e percebi que as sombras e os contornos difusos projetados pela luz oblíqua do entardecer, ao invés de incutir temor, transformavam a paisagem, que há muitos poucos minutos era definida e previsível, em algo um tanto

pastoso, intrigante. E o que mais apreciei era a curiosidade crescente em mim sobre o que poderia vir após as curvas, retas, montes e baixios.


A estrada só passou a existir para mim quando a percorri. Embora fosse uma estrada traçada há muito tempo, bem asfaltada e segura, a mim era um risco em um mapa de Goiás ou uma imaginação ao pé de uma boa conversa, uma leitura. Ela não tem nada de espetacular ou um ponto cardeal, somente um caminho que corta o espaço geográfico de nosso Estado entre duas cidades, a capital, e a do interior. Cidades, fazendas, plantações e rios. Uma pequena estrada que me trouxe uma das maiores realizações que já tive.


Tudo isto grandemente influenciado pela leitura do clássico On the Road, de Jack Kerouac, edição de bolso, da L&PM que você já te recomendei. Um dos símbolos do inconformismo da geração anos 60, em um tom autobiográfico, a lenda nos conta como Kerouac escreveu o livro tomado por um "fluxo de consciência" em três semanas, datilografados em um rolo de papel de 40 metros de comprimento, em espaço único, sem parágrafos, de maneira musical, devendo ser lido em voz alta, com alternâncias poéticas e rimas que somente no original brilham em toda a sua loucura e vivacidade.


Sei que você gosta de História, então lá vai um cadinho. No período pós-guerra, onde a cultura dominante lutava para reassumir as rédeas, sentindo que o mundo caminhava cada vez mais para o conformismo e esmagados pela repressão psicológica da "lei e ordem", surgiu, o que alguns denominam a primeira como a primeira forma de sub-cultura, entre muitos movimentos de contestação, a Geração Beat. Tanto podemos utilizar o termo para nomear o grupo de escritores que iniciou o movimento quanto para denominar o movimento que eles detonaram. Estes prezavam por uma existência mais dionísica, improvisada, caótica, enfim, "contracultura". A vida que você sempre quis levar mas teus pais não deixam.


Muitas pitadas de jazz (por excelência o estilo musical do improviso), bebidas e drogas; prezando pelo retorno à humanidade sincera e afetiva; ao calor dos corpos:


ao sexo como forma de expressão e liberdade...


todos estes fatores aliados à mais pura sinceridade e alegria de existir deflagraram o início da revolução cultural dos anos 60, um dos temas mais fascinantes da História do século XX e que modificou todo o curso do que viria, principalmente o Rock. Este é o tipo de livro que se ama pela descrição e pela musicalidade, pela loucura, pela alegria, pelo simples prazer de ler. Embora longe de ser uma unanimidade, visto que o modelo de vida pregada é totalmente incompatível com a cultura mainstream e os valores de grande parte da cristandade ocidental, aos de espírito livre certamente agradará, como você. O primeiro do ano!


Ao ano de 2008, saúdo os novos caminhos e oportunidades que certamente nos serão mostrados. Espero que nos esforcemos mais para retirá-los do mapa e transformamos em estradas percorridas. Pois só assim elas, de fato, existirão.


Ps: Meu amado primo, já é 22 de janeiro e terminei o terceiro livro do ano. A Jangada de Pedra, de José Saramago e Felicidade, de Eduardo Giannetti são congruentes? Veremos! Até a próxima carta, e me escreva constantemente. Um abraço.

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terça-feira, 11 de dezembro de 2007

in vino veritas


Era segunda feira e eu tinha acabado de sofrer na cadeira do dentista uma tortura inigualável (hmm... mentira, mas fica mais dramática a história). Aturdido e padecendo de dores, comecei a pensar com os meus botões: o que fazer naquela noite? Já estava de férias e sem a faculdade, mais tempo sobra para estes pequenos prazeres. Minha namorada chegou com uma brilhante idéia: vamos à loja de vinhos que abriu na esquina!

“Opa, alto lá cara-pálida... vinho?”. De vinho eu só tenho ciência dos litros e garrafões que já entornei quando era moleque e ficava ouvindo música e tocando violão com os meus amigos, debaixo do pé de manga na casa do Raphael. Em suma, sou um zero à esquerda nesta arte tão requintada da enologia. Peçam-me uma sugestão de vinho e eu devo falar algo como “Mas com essa grana você compra 2 caixas de Bohemia!”. É mais ou menos assim.

“Hmm... boa idéia. Vamos lá, vamos ver se consigo enfim gostar tanto de vinho como eu gosto de certeza.” Dá para perceber que seria mais uma perdição na minha vida. Mas como eu gosto do mal-feito, me vesti e fomos à loja.

Sempre me lembro do Sideways – entre umas e outras (continuo me surpreendendo com a criatividade das pessoas que traduzem os nomes dos filmes... só a Polícia Federal consegue superá-los com o nome de suas operações.), um filme que eu acho horrível e entediante, mas para os conhecedores e amantes da bebida deve ser muito bom. Até tentei compreender e apreender sobre as variedades de uva essas coisas, mas não consegui.

A noite prenunciava-se fria e perfeita, já que no DVD outro filme nos aguardava Stardust, de Neil Gaiman (o criador de Sandman). Este sim vale cada gigabyte baixado. Outra história para um outro dia.

A loja é realmente muito bem arrumada, e oferece muitos vinhos e outras coisas gostosas, e o preço estava bem em conta (cerveja Therezópolis a R$3.89 !). Bom, vamos lá, deixa eu esquecer a cerveja e me enfurnar por aqui e ali, dar uma pesquisada e achar algo que o valha. Sempre me dizem que meu problema com o vinho é o preço dos que compro, mas fica complicado um mamão como eu pagar trinta e cinco reais numa garrafa espetacular e não achar nada de mais.

Procurei pelos vinhos chilenos e argentinos, já que pelo que leio, oferecem um ótimo custo-benefício (note bem essa palavra, custo-benefício...). Olha daqui, bisbilhota dali, eu to sem muita grana, então achei que comprando um entre 15 e 20 reais seria uma boa escolha, ou pelo menos não poderia ser tão ruim né?

Fiquei entre um argentino e um chileno. Bom, nessa hora uma opinião de quem entende é o necessário, então eu e minha namorada fomos ao sommelier, ao vouletier, sabe-se lá qual o nome do cara que conhece disso. Com toda a tranqüilidade pergunto:

“Amigo, estou em dúvida entre este chileno e este argentino. Qual você me recomendaria para acompanhar alguns quei...”

“Escolhe este (o argentino). Este chileno é reservado, difícil, mais complexo, enquanto este é um bom vinho. Ele é honesto.”

“Honesto?”, eu redargüi.

“É, por este preço... Ele é bem honesto”.

Porra. Por este preço? Que raios isso quer dizer? A honestidade do vinho tem a ver com o preço? Aliás, que merda é essa de honestidade? Aliás, não, aliás mesmo, alguém pode me explicar se o cara estava tirando onda comigo ou não? Eu estou até agora achando que o cara me tirou...

Acabou que ainda levei o vinho só para entender o que ele queria dizer com essa tal honestidade. Não entendi a palavra, mas era um bom vinho no final das contas.

Honestidade ... sei...

Ps: O motivo da Foto? O cidadão atrás ao centro, o espetacular Johm Entwistle, era um famoso apreciador de vinhos (e outros aditivos mais ...). Em 27 de junho de 2002, um dia antes da abertura da turné americana do The Who, o baixista foi encontrado morto em seu quarto no Hard Rock Hotel e Casino, em Las Vegas. Ao seu lado, reza a lenda, garrafas de vinho e cocaína.

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domingo, 9 de dezembro de 2007

Olhos de Cão Azul

1967. No mundo, a Guerra Fria se desdobra no Vietnam. No Brasil, é iniciada a escalada para os violentos “anos de chumbo”, que viriam dois anos depois. Movimentos estudantis e de esquerda iniciam a luta armada contra a ditadura que marcaria a ferro e fogo nossa nação.

Na música, em primeiro de junho os Beatles lançam o álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (considerado o número 1 de todos os tempos pela revista americana Rolling Stone), revolucionando todo o rock. Uma incipiente banda edita seu debut, The piper at the gates of dawn, (seis anos depois, lançaria sua obra prima The Dark Side of the Moon...). Jimi Hendrix lança seu Are You Experienced, e o planetinha nunca mais foi o mesmo.

Morrem Ernesto Rafael Guevara de la Serna e João Guimarães Rosa. Tanta coisa acontecendo em tempos conturbados e confusos (mas quais não são?). Eis que, neste mesmo ano de 1967, estas singelas palavras anunciaram a definitiva entrada de um escritor colombiano entre os deuses da literatura humana.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como um ovo pré-histórico. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com os dedos."

Gabriel Garcia Márquez inicia assim o seu livro “Cem Anos de Solidão”. Talvez acometido pela mesma febre da insônia que ataca a família Buendía, eu li todo o livro em dois dias intercalados por uma noite lá pros meus dezoito anos. Não conseguia entender como palavras, sem rebusque nem pedantismo, colocadas uma após a outra, tal qual formigas em um trieiro, conseguiam me atingir com tamanha fúria, feito bruxaria.

Pois o mesmo fado que atravessa a família Buendía, já aclamada nos versos “porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”, é o mesmo feitiço que te acorrenta ao livro. Ainda te lança em uma atemporalidade permanente a cada página lida, ao reconhecimento mútuo com os personagens que se sucedem. Os atores dum mundo fantástico e real ao mesmo tempo, um mundo onde a confusão de nomes parecidos dos personagens, todos os Josés, Arcadios, Aurelianos, não traz penúria a quem lê, mas o encarcera no universo de Garcia Márquez, recorrente em todos os seus livros.

Macondo não é uma vila impossível. Macondo é a própria história da América Latina, das cidades pequenas e das grandes metrópoles. É o atraso de mãos dadas com o progresso, o sonho, a loucura e a paixão que habita nossas paragens. A banana e as formigas, o café e os bois, o rio que traz o ouro e a enchente. As montanhas e a distância que impedem a informação do mundo exterior, e a protegem da chegada da revolução e da guerra. Os constantes ciclos que as cidades passam de fartura e de desgraça, arrastam consigo seres humanos que estão irremediavelmente ligados à terra, ao seu local de existência.

Cada Buendía carrega consigo um dom que é tambem a sua maldição. Por entre os momentos de felicidade percebe-se a solidão de um personagem ou a solidão difusa que se espalha por sobre a casa. A solidão que está agarrada ao barro da parede, à cal da pintura branca, aos peixinhos dourados, os animaizinhos de caramelo, solidão esta que se recusa a sair da mente e do coração dos personagens. Toda a aparente imortalidade da família, que se confunde nos elos de pais e filhos, sobrinhos e netos que, indubitavelmente, carregam uma característica do seu genitor e comportam-se tal como avô, o pai, a mãe. Todos são imersos na solidão.

Mas não a solidão que em nosso tempo é taxada de maléfica, inconcebível ao ser humano, e combatida violentamente pelos livros de auto-ajuda, os produtos, antidepressivos. Talvez a solidão que Vinícius deixa entremear nas linhas de alguns de seus poemas, principalmente Dialética,onde ainda enxergo um quê de tristeza/solidão muito presente. É a solidão que inevitavelmente atinge o ser humano pois ele existe. Talvez, advenha do vazio da existência. Mas considero que é a solidão necessária ao engrandecimento do espírito e da mente.

Garcia Márquez dizia que gostaria de escrever como sua avó lhe contava estórias. E esta é uma estória belíssima e triste ao mesmo tempo, em que a solidão é preenchida pelos entes e pela realidade fantástica dos acontecimentos da vida, uma vida em que ocorrem incestos, assassinatos, luxúria, desejo e mentira, traição, desprezo e perfídia de maneira simples, em que a violência é transmitida assim como a alegria, de forma calma e pacífica, se isso pode ocorrer. Não há sobressaltos nos adjetivos e descrições, nem emoções em demasia. Tudo é muito fluido e muito perene. Em uma época tão recente, como o autor descreve, em que as coisas careciam de nome, o romance existe por si só, te laça por ele mesmo e se expande e contrai em um ritmo natural. Não é necessário nada, além de um espírito livre para ouvir uma história.

De qualquer modo, não há como viver e não ter lido “Cem Anos de Solidão”. Teria por mim, uma vida muito solitária quem o fizesse.


Ps: O título, "Olhos de Cão Azul", é outro dos livros de Gabriel Garcia Marquez. Eu considero um dos títulos mais legais de livro que já vi.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Curta Brasileiro

Laços, Flávia Lacerda e Adriana Falcão

Com boas e singelas idéias, podemos fazer algo de positivo. Este curta é um exemplo. Foi vencedor do concurso Project Direct no YouTube e será exibido no Festival de Sundance, um dos mais importantes do cinema alternativo. O roteiro é de Adriana Falcão, mãe da atriz principal Clarice Falcão, e foi dirigido por Flávia Lacerda, com fotografia de Felipe Reinheimer e participação de Célio Porto e Jô Abdu.

Simples, com fotografia enxuta e edição rápida. Os angulos são exatos, nem demasiado longos, mas que utilizam o momento correto para transformar a linha da história. A montagem e edição, aliado à boa música, piegas sim, mas emotiva, que tiram do roteiro a sua última gota de autenticidade. De outro modo, seria um lugar comum piegas (valeu ogro!) como tantos que vemos por aí.

Vale lembrar que foram três os escolhidos entre os curtas que competiram e o brasileiro ficou em primeiro lugar.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Bushido

Ato VII, Cena III

Melquíades se encontra perdido na densa neblina, o único remo que resta pende ao lado de seu corpo, um sol de meio dia atravessa o nevoeiro, a opacidade lhe é própria dos olhos. Na vigota da proa, o Diabo está sentado.

Diabo:
Acorda.

Melquíades:
Deixe-me em paz, pelo menos aqui neste momento.

Diabo:
Fraco como sempre. Lá me vem a cantar exéquias antes do fato.

Melquíades:
Essa sua arrogância me cansou há muito tempo.

Diabo:
Que se há de fazer, sou o Maldito. Sabes que toda a sorte de defeitos e malefícios são creditados à minha pessoa.

Melquíades:
O que você veio fazer aqui?

Diabo:
Vim lhe acompanhar a dar cabo da idéia imbecil, porém a mim deveras satisfatória, que há muito ronda tua pestana. Sei que há algum tempo eu coloquei-lhe pedras no caminho que seriam suficientes para levar-te ao sanatório ou ao cemitério. Mas, deus sabe por que, eu me afeiçoei a você. E por isso, eis-me.

Melquíades:
Veio me dissuadir?

Diabo:
Com que pensas que estás falando? Com Deus? De maneira alguma lhe falaria “não faça”. De minha parte, saiba que aguardo ansioso.

Melquíades:
Seu abjeto. Aflição e sofrimento. Não cansa do eterno tormento da humanidade?

Diabo:
Tua própria pergunta lhe responde. Sou eterno. Aliás, permita-me um gracejo. Fazia alguns anos que não sorvia com tanto deleite angústia e desgosto tão reais, tão puros, tão... românticos.

Melquíades:
Sim, sofro... Por ela, ainda haveria de sofrer mais, se vida houvesse.

Diabo:
Repetindo fatos conhecidos de todos. Derrama-te o tempo todo, andas encolhido, macambúzio e quase não conversa. Emagrece a olhos vistos. Finge não vê-la, mas só aumenta a imensidão de teu vazio com os rápidos relances que lhe chegam às vistas. És tolo, feito da matéria prima dos néscios e derrotados. À luz, transparece todo o seu desejo. Por isso andas na sombra. Belo espécime de uma raça há muito extinta. Prazer deu-me durante sua existência. Desde já, estou grato.

Melquíades:
Todo este predicado só me mostra o quanto seria e não fui. O quanto deveria mas não pude. OLHE PARA MIM! Minha dor, você a sente?

Diabo:
Claro que a sinto. Sempre a senti.

Melquíades:
Como poderia então suportar acordar e adormecer sem pensar em nada a não ser nela? Vejo-a sem vê-la. Quando não está, sou tangará em cortejo . À simples visão de sua silhueta, desfaço-me em farelos. Sei que eu sou o provável culpado. Eu levei a situação a este ponto. À falta de coragem e hombridade, sufoquei-me e busquei o exílio. Mas não o suportei. Tornei a seu lado, aparando sua beleza que desmanchava com cálices diminutos, todos os dias de minha luta e amargura. E quão estúpido fui ao crer que havia reciprocidade!

Diabo:
Para você nunca houve em nenhum tempo, nem com ela nem com as outras.

Melquíades:
Por isso eu quis que ela sofresse. Amaldiçoei-a e parti. Apartei-me de vez por todas dela. Mas ela não sofreu. Nem se deu falta. O tempo passou, e minha sutil permanência que outrora era inconcebível ausente se tornou um retalho de uma capa há muito surrada pela chuva. Agora estou desonrado. Novamente maculado, não consigo suportar mais o fardo de ter o pior dos papéis, o do assassino que é pego com a faca no aposento do rei, do ladrão que não consegue carregar o furto, o do tolo que nem entender a situação conseguiu. Estou definhado.

Diabo:
E aqui estamos. Vamos, o que você precisa? Que eu cante uma canção singela? Recite uma poesia? Com esta neblina... Ausência seria o derradeiro sentido irônico de uma vida estúpida.

Melquíades:
Não tenho mais onde colocar tuas ofensas em meu peito. As lágrimas, todas elas, sulcaram minha face, transformando-a no meu próprio relevo das memórias. Mesmo não vendo, toco por onde cursou toda minha vida de melancolia e insegurança. Mas basta. Deixe que me enlaçarei no alto do mastro e o peso de meu corpo inútil tolherá meu sopro de vida.

Diabo:
O mastro há muito se foi. Talvez nem tinha. Não me lembro.

Melquíades:
Então, dê-me a faca.

Diabo:
Agarra-a.

Melquíades:
Oh, hora derradeira! Oh, destino inconcebível para quem trilhou tantos sonhos quando menor. Quantos caminhos que poderiam desaguar em portos abarrotados de felicidade e compreensão, ternura e alegria! Oh, tristeza que agora me confrange, somente aporto em mares inóspitos e, em casas, nem pouso no alpendre é me dado. Levo comigo esta vida que seria e não foi para algum local onde a lembrança dela não me encontre, onde o perfume não me inebrie. Lá, não encontrarei fortuna, somente os mortos e as almas que se arrastam em uma imensidão de poeira, miséria e tristeza. Mas lá não sofrerei com sua imagem presente, o abandono desordenado de sua serenidade ao alcance do toque de meus dedos fracos. Não, lá não lembrarei de quando estivemos juntos, nem sonharei com a proximidade que nunca existiria, a não ser em meus devaneios.

Diabo:
Mutila-te, vamos, arranca de sua carne toda a nódoa que ela impregnou. Acerta-te em cheio, seja pelo menos honrado, como o guerreiro que você sempre sonhou a sua vida toda. Que este último momento de sua existência seja teu instante de serenidade e quietude buscado desde sempre.

Melquíades:
Não consigo, tenho medo!

Diabo:
Vamos homem, seja varão! Ampute-a de você. Agora!

Melquíades traz a faca junto ao ventre, a ponta coçando à altura do plexo solar . O braço levanta poucos centímetros. Um golpe seco, um suspiro longo. Lentamente, Melquíades curva-se sobre os joelhos. Os olhos mareados apertam, o rosto contorce-se em um espasmo violento. Merda e urina escorrem pelas pernas. Ele levanta a cabeça e olha o Diabo, que continua na mesma atitude desde o inicio, com os braços cruzados sobre os joelhos, olhando, sem tristeza, nem dor, nem alegria. Simplesmente testemunhava. Melquíades encontra este olhar distraído e reúne as ultimas forças. Com um forte puxão, abre uma fenda em direção ao tórax, mas não passa do esterno.

Melquíades:
Drogas...

Ainda curvado, lentamente introduz a mão direita e tateia. Encontra um arfar lento mas vigoroso de um músculo. Encosta sua palma em seu coração. Tenta apertá-lo, tenta sufocá-lo. Mas o maldito teima em bater. Melquíades então compreende o que nunca entendeu. Mas já é tarde. Lentamente, fecha os olhas. O Diabo enfim levanta e vai por sobre as águas.

Diabo:
È uma pena. Nunca conseguiu ver a cor de seu coração.