"A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que
se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com
a satisfação canina de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos
sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, mesma tristeza das casas em frente, do
sujo tabuleiro de janelas de tempo com seu letreiro HOTEL DE BELGIQUE.
[...]
E não é mau que as coisas nos encontrem outra vez todo dia e sejam as mesmas. Que a
nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio e que o romance aberto em cima da
mesa comece a andar outra vez na bicicleta de nossos óculos, por que haveria de ser mau?
Mas como um touro triste é preciso baixar a cabeça, do centro de tijolo de cristal empurrar
para fora, em direção ao outro tão perto de nós [...] Não pense que o telefone vai lhe dar os
números que procura. Por que haveria de dá-los? Virá somente o que você tem preparado e
resolvido, o triste reflexo de sua esperança...
[...]
E se, de repente, uma traça pára pertinho de um lápis e palpita como um fogo cinzento,
olhe-a, eu a estou olhando, estou apalpando seu coração pequenino, e ouço-a: essa traça
ressoa na pasta de cristal congelado, nem tudo está perdido. Quando abrir a porta e
assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as
casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode
jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer, quando eu os
olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as
pestanas e as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto
avanço passo a passo para ir comprar o jornal da esquina.
(Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e Famas)