domingo, 9 de dezembro de 2007

Olhos de Cão Azul

1967. No mundo, a Guerra Fria se desdobra no Vietnam. No Brasil, é iniciada a escalada para os violentos “anos de chumbo”, que viriam dois anos depois. Movimentos estudantis e de esquerda iniciam a luta armada contra a ditadura que marcaria a ferro e fogo nossa nação.

Na música, em primeiro de junho os Beatles lançam o álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (considerado o número 1 de todos os tempos pela revista americana Rolling Stone), revolucionando todo o rock. Uma incipiente banda edita seu debut, The piper at the gates of dawn, (seis anos depois, lançaria sua obra prima The Dark Side of the Moon...). Jimi Hendrix lança seu Are You Experienced, e o planetinha nunca mais foi o mesmo.

Morrem Ernesto Rafael Guevara de la Serna e João Guimarães Rosa. Tanta coisa acontecendo em tempos conturbados e confusos (mas quais não são?). Eis que, neste mesmo ano de 1967, estas singelas palavras anunciaram a definitiva entrada de um escritor colombiano entre os deuses da literatura humana.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como um ovo pré-histórico. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com os dedos."

Gabriel Garcia Márquez inicia assim o seu livro “Cem Anos de Solidão”. Talvez acometido pela mesma febre da insônia que ataca a família Buendía, eu li todo o livro em dois dias intercalados por uma noite lá pros meus dezoito anos. Não conseguia entender como palavras, sem rebusque nem pedantismo, colocadas uma após a outra, tal qual formigas em um trieiro, conseguiam me atingir com tamanha fúria, feito bruxaria.

Pois o mesmo fado que atravessa a família Buendía, já aclamada nos versos “porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”, é o mesmo feitiço que te acorrenta ao livro. Ainda te lança em uma atemporalidade permanente a cada página lida, ao reconhecimento mútuo com os personagens que se sucedem. Os atores dum mundo fantástico e real ao mesmo tempo, um mundo onde a confusão de nomes parecidos dos personagens, todos os Josés, Arcadios, Aurelianos, não traz penúria a quem lê, mas o encarcera no universo de Garcia Márquez, recorrente em todos os seus livros.

Macondo não é uma vila impossível. Macondo é a própria história da América Latina, das cidades pequenas e das grandes metrópoles. É o atraso de mãos dadas com o progresso, o sonho, a loucura e a paixão que habita nossas paragens. A banana e as formigas, o café e os bois, o rio que traz o ouro e a enchente. As montanhas e a distância que impedem a informação do mundo exterior, e a protegem da chegada da revolução e da guerra. Os constantes ciclos que as cidades passam de fartura e de desgraça, arrastam consigo seres humanos que estão irremediavelmente ligados à terra, ao seu local de existência.

Cada Buendía carrega consigo um dom que é tambem a sua maldição. Por entre os momentos de felicidade percebe-se a solidão de um personagem ou a solidão difusa que se espalha por sobre a casa. A solidão que está agarrada ao barro da parede, à cal da pintura branca, aos peixinhos dourados, os animaizinhos de caramelo, solidão esta que se recusa a sair da mente e do coração dos personagens. Toda a aparente imortalidade da família, que se confunde nos elos de pais e filhos, sobrinhos e netos que, indubitavelmente, carregam uma característica do seu genitor e comportam-se tal como avô, o pai, a mãe. Todos são imersos na solidão.

Mas não a solidão que em nosso tempo é taxada de maléfica, inconcebível ao ser humano, e combatida violentamente pelos livros de auto-ajuda, os produtos, antidepressivos. Talvez a solidão que Vinícius deixa entremear nas linhas de alguns de seus poemas, principalmente Dialética,onde ainda enxergo um quê de tristeza/solidão muito presente. É a solidão que inevitavelmente atinge o ser humano pois ele existe. Talvez, advenha do vazio da existência. Mas considero que é a solidão necessária ao engrandecimento do espírito e da mente.

Garcia Márquez dizia que gostaria de escrever como sua avó lhe contava estórias. E esta é uma estória belíssima e triste ao mesmo tempo, em que a solidão é preenchida pelos entes e pela realidade fantástica dos acontecimentos da vida, uma vida em que ocorrem incestos, assassinatos, luxúria, desejo e mentira, traição, desprezo e perfídia de maneira simples, em que a violência é transmitida assim como a alegria, de forma calma e pacífica, se isso pode ocorrer. Não há sobressaltos nos adjetivos e descrições, nem emoções em demasia. Tudo é muito fluido e muito perene. Em uma época tão recente, como o autor descreve, em que as coisas careciam de nome, o romance existe por si só, te laça por ele mesmo e se expande e contrai em um ritmo natural. Não é necessário nada, além de um espírito livre para ouvir uma história.

De qualquer modo, não há como viver e não ter lido “Cem Anos de Solidão”. Teria por mim, uma vida muito solitária quem o fizesse.


Ps: O título, "Olhos de Cão Azul", é outro dos livros de Gabriel Garcia Marquez. Eu considero um dos títulos mais legais de livro que já vi.

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