Querido primo:
"A estrada só existe quando a percorremos." Esta é, por certo, uma frase que guarda ressonância com muitas outras que tratam do mesmo tema. Na verdade, até parece que foi dita várias vezes ao longo da história e literatura humana, em todos os cantos que trouxeram o tópico à tona. Eu humildemente a lancei mão na viagem que eu e minha namorada fizemos no final do ano para passarmos o reveillon na magnífica Pirenópolis.
Saímos de Goiânia à tardinha, aproveitando ainda a iluminação natural do sol nos dias longos de nosso verão. Ainda estava claro quando saímos, o escurecer só chegando após as sete e meia, sete e quarenta. Em uma das curvas mais acentuadas, já com bastante chão andado, ponderei sobre como gostava de dirigir a noite, e percebi que as sombras e os contornos difusos projetados pela luz oblíqua do entardecer, ao invés de incutir temor, transformavam a paisagem, que há muitos poucos minutos era definida e previsível, em algo um tanto
pastoso, intrigante. E o que mais apreciei era a curiosidade crescente em mim sobre o que poderia vir após as curvas, retas, montes e baixios.
A estrada só passou a existir para mim quando a percorri. Embora fosse uma estrada traçada há muito tempo, bem asfaltada e segura, a mim era um risco em um mapa de Goiás ou uma imaginação ao pé de uma boa conversa, uma leitura. Ela não tem nada de espetacular ou um ponto cardeal, somente um caminho que corta o espaço geográfico de nosso Estado entre duas cidades, a capital, e a do interior. Cidades, fazendas, plantações e rios. Uma pequena estrada que me trouxe uma das maiores realizações que já tive.
Tudo isto grandemente influenciado pela leitura do clássico On the Road, de Jack Kerouac, edição de bolso, da L&PM que você já te recomendei. Um dos símbolos do inconformismo da geração anos 60, em um tom autobiográfico, a lenda nos conta como Kerouac escreveu o livro tomado por um "fluxo de consciência" em três semanas, datilografados em um rolo de papel de
Sei que você gosta de História, então lá vai um cadinho. No período pós-guerra, onde a cultura dominante lutava para reassumir as rédeas, sentindo que o mundo caminhava cada vez mais para o conformismo e esmagados pela repressão psicológica da "lei e ordem", surgiu, o que alguns denominam a primeira como a primeira forma de sub-cultura, entre muitos movimentos de contestação, a Geração Beat. Tanto podemos utilizar o termo para nomear o grupo de escritores que iniciou o movimento quanto para denominar o movimento que eles detonaram. Estes prezavam por uma existência mais dionísica, improvisada, caótica, enfim, "contracultura". A vida que você sempre quis levar mas teus pais não deixam.
Muitas pitadas de jazz (por excelência o estilo musical do improviso), bebidas e drogas; prezando pelo retorno à humanidade sincera e afetiva; ao calor dos corpos:
ao sexo como forma de expressão e liberdade...
todos estes fatores aliados à mais pura sinceridade e alegria de existir deflagraram o início da revolução cultural dos anos 60, um dos temas mais fascinantes da História do século XX e que modificou todo o curso do que viria, principalmente o Rock. Este é o tipo de livro que se ama pela descrição e pela musicalidade, pela loucura, pela alegria, pelo simples prazer de ler. Embora longe de ser uma unanimidade, visto que o modelo de vida pregada é totalmente incompatível com a cultura mainstream e os valores de grande parte da cristandade ocidental, aos de espírito livre certamente agradará, como você. O primeiro do ano!
Ao ano de 2008, saúdo os novos caminhos e oportunidades que certamente nos serão mostrados. Espero que nos esforcemos mais para retirá-los do mapa e transformamos em estradas percorridas. Pois só assim elas, de fato, existirão.
Ps: Meu amado primo, já é 22 de janeiro e terminei o terceiro livro do ano. A Jangada de Pedra, de José Saramago e Felicidade, de Eduardo Giannetti são congruentes? Veremos! Até a próxima carta, e me escreva constantemente. Um abraço.
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