segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Michel Foucault – Parte I

“Não me perguntem quem eu sou e não me digam para continuar o mesmo: esta é uma moral de estado civil.” Michel Foucault

Em 1975, o jornalista e escritor francês Roger-Pol Droit entrevista seu conterrâneo Michel Foucault. Foucault, à época, já é lenda. Uma incógnita, a descontinuidade enfeixada em uma personalidade única e multifacetada, pertencente a e, por que não, a liberdade por excelência. Foucault acabara de publicar Vigiar e Punir, um dos seus livros mais conhecidos e, nesta série de três entrevistas, disserta, expõe-se, esconde, brinca, joga a respeito de seus pensamentos, literatura e sua vida e obra, numa das raras vezes em que Foucault se sente a vontade para falar sobre si. Estas entrevistas são reunidas e publicadas por Droit no livro Michel Foucault, Entrevistas (Editora Graal, 107 páginas). A introdução feita pelo autor do livro é uma pequena obra de arte. Versa sobre o sujeito principal de uma peça, a sua própria vida, encenada com violência e paixão, nas palavras de Droit:

“Uma criança frágil se entedia entre duas guerras em Poitiers, em meio á vida abastada de pessoas eminentes como são as da sua família e, notadamente, seu pai, cirurgião e professor de anatomia na Escola de Medicina. Um aluno muito dotado vai para o liceu Henrique IV preparar-se para a Escola Normal Superior. Em 1948, um estudando da École Normale Supérieure, homossexual e membro do PCF tenta suicidar-se e parece beirar a loucura. Um filósofo apaixonado por psicologia, abandona a Fundação Thiers pela Universidade de Lille. Na Suécia, um adido cultural surpreende a pacata cidade de Uppsala dirigindo um jaguar. Ao voltar de Hamburgo, via Varsóvia, um jovem médico, dândi feliz e provocador, ensin em Clermont-Ferrant. O anti-comunista trava uma disputa com Roger Garaudy. Um membro do júri da École Normale d’Administration, participa da elaboração da reforma Fouchet.
Todos eles se chamam Michel Foucault...”

Sua vida e obra, absurdamente caóticas, prolíficas e descontínuas, foi interrompida pela Aids em 1984, aos cinqüenta e sete anos. Muito pouco se sabia a respeito da doença à época (o vírus fora descoberto em 1983 pelo Institut Pasteur), e Foucault guarda a triste memória de ser um dos primeiros casos “célebres” a falecer.

Abaixo, um excerto deste livro, o que mostra a clareza e o brilhantismo das idéias de Focault. Os grifos e itálicos são uma petulância minha.

" Dos suplícios às celas"

Supliciava-se (o corpo) com aplicação, seguindo um código preciso de torturas. Marcavam-se, amputavam-se, deslocavam-se corpos. Da fogueira ao patíbulo, do pelourinho à forca, o sofrimento físico era encenado com um fausto exemplar. Para que ninguém o ignorasse... Tudo isto chegou ao fim, de modo bastante brusco, na segunda metade do século XVIII.

O barulho monótono das fechaduras, a sombra das celas ocuparam o lugar do grande cerimonial da carne e do sangue. Não se exibe mais o corpo do condenado:ele é escondido. Não se quer mais assassiná-lo: ele é adestrado. É a “alma” que é reeducada.

A mudança ocorreu em menos de um século, no conjunto da cultura ocidental. Certamente, a Idade Média não ignorava os cárceres nem as masmorras. Porém, continuava estranha a este sistema rígido de detenção sistemática, regulamentada, minuciosa, que se estabelece entre 1780 e 1830: a Europa e o Novo Mundo cobrem-se de penitenciários... A este “nascimento da prisão”, Michel Foucault restitui o sentido e o alcance.

Basta dizer, com os “reformadores” do século XVIII (Beccaria), que a “humanização”, os “progressos do gênero humano” explicam e justificam este transtorno do sistema punitivo? Por detrás dos álibis dos ideólogos, Foucault desnuda o jogo complexo dos poderes.

O estardalhaço dos suplícios e o silêncio da reclusão não se opõem, com efeito, como dois elementos isolados, dois fenômenos superficiais. Indicam, sim, a passagem de uma justiça a uma outra, uma mudança profunda na própria organização do poder. O criminoso, na monarquia absoluta, desafia o poder do rei e este poder o esmaga lembrando a todos, com estardalhaço, sua força infinita. para os teóricos das Luzes, o homem que comete um crime rompe o contrato que o liga a todos os seus semelhantes: a sociedade pó afasta e o adestra, regulando com precisão cada fato, cada gesto e cada momento da vida carcerária.

Pois a prisão é uma regulamentação feliz do espaço: o olhar do vigia pode e deve tudo ver. Uma regulamentação do tempo, cuja utilização é fixada a cada hora. Uma regulamentação dos gestos, das atitudes, dos mínimos movimentos do corpo.

Esta disciplina, a prisão não a inventou. Com um luxo de referências e de documentos, Foucault mostra como, durante toda a Idade Clássica, as técnicas de adestramento do corpo foram refinadas, unificadas, sistematizadas. Elas já existiam, esparsas, isoladas. Mas não formavam esta rede de procedimentos aperfeiçoados que, da escola às Forças Armadas, passou a controlar o corpo e suas forças.

A prisão, não é, então, única: ela se estabelece no conjunto da sociedade disciplinar, esta sociedade de vigilância generalizada que é ainda a nossa. “O que há de surpreendente, escreve Foucault, se a prisão se assemelha às fábricas, às escolas, às casernas, aos hospitais, que todos eles se pareçam com as prisões?”.

Para compreender sua organização comum, Foucault esboça nesse livro uma “anatomia política”, uma “microanálise” da ação de poder sobre os corpos. Como se organiza, na prisão e fora dela, o jogo dos poderes? É o que esta entrevista, entre outras, torna preciso.

Roger-Pol Droit: A prisão, em sua função e em sua forma contemporânea, pode passar por uma invenção repentina e isolada, ocorrida no final do século XIX. Você mostra, ao contrário, que seu nascimento deve ser realocado numa mudança mais profunda. Qual?

Foucault: Ao ler os grandes historiadores da época clássica, pode-se ver o quanto a monarquia administrativa, tão centralizada, tão burocratizada quanto a imaginamos, era, apesar de tudo, um poder irregular e descontínuo, deixando aos indivíduos e aos grupos uma certa latitude para burlar a lei, para se acomodar aos costumes, deslizar entre as obrigações,etc. O Antigo Regime arrastava consigo centenas de milhares de ordens jamais aplicadas (lettres-de-cachet, As verdades e as formas jurídicas), direitos que ninguém exercia, regras às quais massas de pessoas escapavam. Por exemplo, as fraudes fiscais mais tradicionais, como também o contrabando mais manifesto, faziam parte da vida econômica do reino. Em suma, havia entre a legalidade e a ilegalidade uma perpétua transação que era uma das condições de funcionamento do poder nesta época.

Na segunda metade do século XVIII, este sistema de tolerância muda. As novas exigências econômicas, o medo político dos movimentos populares, que vai se tornar lancinante na França, depois da Revolução, tornam necessário um outro esquadrinhamento da sociedade. Foi preciso que o exercício do poder se tornasse mais fino, mais estreito, e que se formasse, desde a decisão tomada centralmente até o indivíduo, uma rede tão contínua quanto possível. Trata-se do aparecimento da polícia, da hierarquia administrativa, da pirâmide burocrática do Estado napoleônico.

Já bem antes de 1789, os juristas e os “reformadores” haviam sonhado com uma sociedade uniformemente punitiva, onde os castigos seriam inevitáveis, necessários, iguais, sem exceção nem escapatória possíveis. De repente, estes grandes rituais do castigo, que eram os suplícios, destinados a provocar efeitos de terror e de exemplo, mas aos quais muitos culpados escapavam, desapareceram diante da exigência de uma universalidade punitiva que se concretiza no sistema penitenciário.

Roger-Pol Droit: Mas por que a prisão e não um outro sistema? Qual é o papel social do confinamento, do enclausuramento, dos “culpados” ?

Foucault: De onde vem a prisão? Responderei: “Um pouco de toda parte”. Houve uma “invenção”, sem dúvida; mas invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, de identificação dos indivíduos, de esquadrinhamento de seus gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isto, desde os séculos XVI e XVII, nas Forças Armadas, nos colégios, nas escolas, nos hospitais, nas oficinas. Uma tecnologia de poder fino e cotidiano, do poder sobre os corpos. A prisão é a última figura desta idade das disciplinas.

Quanto ao papel social do internamento, é necessário buscá-lo do lado deste personagem que começa a se definir no século XIX: o delinqüente. A constituição do meio delinqüente é absolutamente correlativa á existência da prisão. Procurou-se constituir, no próprio interior das massas populares, um pequeno núcleo de pessoas que seriam, por assim dizer, os titulares privilegiados e exclusivos dos comportamentos ilegais. Pessoas rejeitadas, desprezadas e temidas por todo mundo.

Na Idade Clássica, ao contrário, a violência, o pequeno furto, a pequena fraude eram extremamente correntes e, afinal de contas, toleradas por todos. O malfeitor conseguia, ao que parece, fundir-se muito bem na sociedade. E, se lhe acontecesse ser preso, os procedimentos penais eram expeditivos: a morte, as galés para o resto da vida, o banimento. O meio delinqüente não tinha, então, este fechamento sobre si mesmo, que foi organizado essencialmente pela prisão, por essa espécie de “molho” no interior do sistema carcerário, onde se forma uma microssociedade, onde as pessoas encetam uma solidariedade real que vai lhes permitir, uma vez fora, encontra apoio nos outros.

A prisão é, então, um instrumento de recrutamento para o exército dos delinqüentes. É para isto que ela serve. Fala-se, há dois séculos: “A prisão fracassa, pois ela fabrica delinqüentes”. Eu diria, antes, ela é bem-sucedida, pois é isso que se lhe requer.



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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

"A estrada só existe quando a percorremos."

Querido primo:


"A estrada só existe quando a percorremos." Esta é, por certo, uma frase que guarda ressonância com muitas outras que tratam do mesmo tema. Na verdade, até parece que foi dita várias vezes ao longo da história e literatura humana, em todos os cantos que trouxeram o tópico à tona. Eu humildemente a lancei mão na viagem que eu e minha namorada fizemos no final do ano para passarmos o reveillon na magnífica Pirenópolis.


Saímos de Goiânia à tardinha, aproveitando ainda a iluminação natural do sol nos dias longos de nosso verão. Ainda estava claro quando saímos, o escurecer só chegando após as sete e meia, sete e quarenta. Em uma das curvas mais acentuadas, já com bastante chão andado, ponderei sobre como gostava de dirigir a noite, e percebi que as sombras e os contornos difusos projetados pela luz oblíqua do entardecer, ao invés de incutir temor, transformavam a paisagem, que há muitos poucos minutos era definida e previsível, em algo um tanto

pastoso, intrigante. E o que mais apreciei era a curiosidade crescente em mim sobre o que poderia vir após as curvas, retas, montes e baixios.


A estrada só passou a existir para mim quando a percorri. Embora fosse uma estrada traçada há muito tempo, bem asfaltada e segura, a mim era um risco em um mapa de Goiás ou uma imaginação ao pé de uma boa conversa, uma leitura. Ela não tem nada de espetacular ou um ponto cardeal, somente um caminho que corta o espaço geográfico de nosso Estado entre duas cidades, a capital, e a do interior. Cidades, fazendas, plantações e rios. Uma pequena estrada que me trouxe uma das maiores realizações que já tive.


Tudo isto grandemente influenciado pela leitura do clássico On the Road, de Jack Kerouac, edição de bolso, da L&PM que você já te recomendei. Um dos símbolos do inconformismo da geração anos 60, em um tom autobiográfico, a lenda nos conta como Kerouac escreveu o livro tomado por um "fluxo de consciência" em três semanas, datilografados em um rolo de papel de 40 metros de comprimento, em espaço único, sem parágrafos, de maneira musical, devendo ser lido em voz alta, com alternâncias poéticas e rimas que somente no original brilham em toda a sua loucura e vivacidade.


Sei que você gosta de História, então lá vai um cadinho. No período pós-guerra, onde a cultura dominante lutava para reassumir as rédeas, sentindo que o mundo caminhava cada vez mais para o conformismo e esmagados pela repressão psicológica da "lei e ordem", surgiu, o que alguns denominam a primeira como a primeira forma de sub-cultura, entre muitos movimentos de contestação, a Geração Beat. Tanto podemos utilizar o termo para nomear o grupo de escritores que iniciou o movimento quanto para denominar o movimento que eles detonaram. Estes prezavam por uma existência mais dionísica, improvisada, caótica, enfim, "contracultura". A vida que você sempre quis levar mas teus pais não deixam.


Muitas pitadas de jazz (por excelência o estilo musical do improviso), bebidas e drogas; prezando pelo retorno à humanidade sincera e afetiva; ao calor dos corpos:


ao sexo como forma de expressão e liberdade...


todos estes fatores aliados à mais pura sinceridade e alegria de existir deflagraram o início da revolução cultural dos anos 60, um dos temas mais fascinantes da História do século XX e que modificou todo o curso do que viria, principalmente o Rock. Este é o tipo de livro que se ama pela descrição e pela musicalidade, pela loucura, pela alegria, pelo simples prazer de ler. Embora longe de ser uma unanimidade, visto que o modelo de vida pregada é totalmente incompatível com a cultura mainstream e os valores de grande parte da cristandade ocidental, aos de espírito livre certamente agradará, como você. O primeiro do ano!


Ao ano de 2008, saúdo os novos caminhos e oportunidades que certamente nos serão mostrados. Espero que nos esforcemos mais para retirá-los do mapa e transformamos em estradas percorridas. Pois só assim elas, de fato, existirão.


Ps: Meu amado primo, já é 22 de janeiro e terminei o terceiro livro do ano. A Jangada de Pedra, de José Saramago e Felicidade, de Eduardo Giannetti são congruentes? Veremos! Até a próxima carta, e me escreva constantemente. Um abraço.

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