quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ontem

Ontem, como é costume, centenas de estudantes foram ao Parque Vaca Brava comemorar o resultado do vestibular da UFG.

É uma festa grande, bagunçada, algo descompensada, onde os calouros tomam trote dos veteranos, quase se afogam nas águas do lago, se emporcalham, bebem muito e apanham, quase na mesma medida. Meninos e meninas que mal saíram das fraldas após meses, quando não anos, de muito sofrimento, expectativa, ansiedade, privação e esforço, esperam se encontrar, enfim, com o êxtase de sua aprovação. Querem comemorar e querem se libertar de tudo o que os oprimiu, angustiou e machucou durante esta jornada.

Há muito tempo também que setores da sociedade reclamam desta farra, da sujeira e da anarquia que é instaurada, a violência com que se praticam os trotes, a bebedeira descontrolada, o tumulto no trânsito, enfim: tudo que foge ao controle, que era reprimido e se libera; o oculto agora revelado neste único dia no ano. Pois ontem não foi diferente. A mesma alegria confusa se espraiou ao lado do parque. A mesma violência em alguns trotes, algo até mais cruéis; a mesma progressão percebida em um calouro que nunca havia bebido antes, ao entornar forçosamente destilado (seja por medo de ser taxado como covarde frente aos teus, seja por arrogância e audácia): primeiro a euforia e a alegria, sendo sucedidas por vertigem, cambaleios, vômitos, e em alguns casos, desmaios.

Deveria existir limites a tudo isto? Não. Não creio que devemos limitar esta festa, não devemos doutrinar a alegria, impor barreiras ao descontrole que, em sua maioria, é saudável. Mas creio que deve haver, acima de tudo, responsabilidade e consciência de que há conseqüências em tudo que fazemos, ou aceitamos que outros façam conosco.

É nesta faixa da realidade que o calouro deve situar-se. O que ele encontra ali é vida em manifestação crua; é o que ele encontrará pela frente em sua existência. A violência dos trotes nunca se resumiu ao trote. O apelo do álcool da celebração perfeita nunca se situou somente naquele dia, não é caracter indelével dos estudantes. A perversidade de certas práticas que manifestam-se naquele dia não é singular. Tapas, socos, pontapés, puxar cabelos, arrastar pelo chão, enfiar a bota suja de lama na cara do outro, pisar em suas costas: estas manifestações não são característica intrínseca daqueles que ali festejam.

Todas estas tendências e personalidades que vemos aflorar naquele dia são reflexos de uma sociedade cínica, sádica e hipócrita. A violência está dentro dos lares e escolas desde muito cedo, pelas pessoas ou pela televisão e o noticiário, está no trato com os outros, no trânsito; o álcool e as drogas já se perdem no tempo como um dos grandes pilares que se sustentam a vida cotidiana, seja para celebrá-la, seja para fugir dela (e esta nuança é tênue). O que seria o álcool e o fumo se não fosse a propaganda?

Hipocrisia e vilania é acusar os jovens de serem os únicos responsáveis por tudo e não assumir a parte que, há muito, sabemos que nos pertence.

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A agressão cobarde de um policial militar ao estudante W. G., que desferiu um soco brutal na boca do menino, já algemado, já dominado, circundado por 8 policiais militares e filmada é uma das cenas que destoam a celebração de ontem e reflete de forma cristalina a confusão que nos metemos nessa altura do campeonato.

Parto das imagens apenas. Não quero esperar as versões que serão liberadas, discutidas, confrontadas, para, ao final, tudo restar-se por baixo do tapete:, sem nenhuma mudança promissora para a nossa sociedade. Tudo pode quedar-se leviano, mas é um risco que assumo.

Curiosamente calouro de direito, assumo que W.G. seja menor de idade. Porque somente por este fato poderia existir qualquer embasamento legal para que os policiais ordenassem que ele entregasse a garrafa de vodka. É inconcebível que ele tenha sido algemado por se recusar a entregar uma garrafa de vodka em uma celebração de rua. Sabendo ser menor, naquela situação, a PM deveria tentar todas as alternativas antes e em último caso conduzi-lo ao juizado da infância e adolescência, sem violência (diga-se, aparente).

Resta acreditar que o jovem, talvez arrogante e audaz como os calouros de direito geralmente o são, tenha desacatado o policial, não apenas resistindo a uma ordem de retirada do local ou entrega da garrafa, mas proferindo impropérios vários aos policiais. Mas nem isso justifica, de maneira alguma, a atitude do policial. Porque todos sabemos como funciona o desacato: primeira e última arma do arsenal de barbaridades, postas de pleno direito, ao policial truculento em seu exercício ignóbil. O crime de 'desacato à autoridade policial' é uma herança maldita do período ditatorial em nosso país, e deveria ter sido varrido, juntamente com quaisquer de suas sombras, de nosso ordenamento.

O que me leva a um terceiro ponto: em que planeta aquele jovem viveu todos estes anos? Ele não sabe como a realidade funciona? O que é a polícia? Como os pais nunca, por menor que seja o caso, não sentaram com o moleque e contaram algumas destas histórias de medo e abuso policial? Porque todos possuímos histórias de abuso policial, de abordagem violenta, de humilhação pública. No mínimo, mesmo estando totalmente correto, o jovem deveria ter acatado a ordem e saído. Não o fez, e a consequência real de seus atos assomou: aqueles não eram os policiais montados em bicicletas do parque, eram tropas de choque do estado. Porque não há como argumentar com a polícia (ela é surda e burra). Não há como se defender da polícia (ela é açoite e ordem). Qualquer outra atitude que não a de submissão total e incondicional tem como conseqüência a dor.

A polícia militar é instituição de horror e repressão, antes designada para as periferias e portanto oculta aos olhos da burguesia. Agora com este levante de autoritarismo e endurecimento em que passamos, renovação de um fascismo latente há muito tempo, ela trouxe, para o seio da classe mais favorecida e até então protegida todas as penúrias, rompantes, ilegalidades e abusos que se acostumou a cometer e infligir, quando invisível aos olhos da imprensa e políticos, nos menos favorecidos. É provável que o caso ganhe alguma repercussão midiática, posto que filmado e acontecido em um dos bastiões da pretensa segurança social, e alguma discussão sobre esta violência policial em particular. Meu palpite: não resultará em nada. Mudanças mais profundas devem ser feitas.

A atitude absurda da polícia e, talvez, a audácia de um calouro de direito juntas deitaram o caldo. O que resta é esperar que este episódio produza alguma reflexão, tanto na turma que adentra na faculdade de direito esse ano, quanto no jovem que sofreu essa agressão covarde: espero que ele tenha essa experiência em seu âmago e lute contra as injustiças e ilegalidades deste sistema; que não a aceite como uma vergonha, ou como um erro, e esqueça em seus porões da memória. Porque fatalmente os fantasmas retornam e assombram.

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Meu pai é um exímio contador de histórias.

Nascido no Rio de Janeiro, sou fascinado por tudo que ele viveu. Me contou apenas uma vez esta história, e sempre me lembro dela (embora as tinturas estejam muito misturadas). Ele retornava para casa lá no Morro do Tuiuti, na Mangueira. Em São Cristóvão, perto do Batalhão da PM, antes das ladeiras do morro, uma blitz da PM. Voltava de um futebol no sábado. Foi parado, desceu do fusca, e o baculejo de praxe. Meu pai, sem mais nem menos, antes de ser liberado, leva uma bofetada na cara de um policial que estava ao lado, nenhum motivo.

Aquela bofetada pesada, que te derruba no chão. Terminada a sessão de humilhação, a ele é permitido se recolher ao carro, e antes de sair, o policial avisa:

"Isto foi por você não ter dito sim senhor nenhuma vez."

Meu pai, liga o fusca, engata a primeira:

"Pode ir", diz o policial

"Sim senhor", retruca meu pai

Move-se o fusca um pouco mas não se dá por vencido e grita ao milico:

"Ah seu filha da puta, corno, viado, tua mãe tá na zona seu broxa!"

E acelera, disparando para casa.


Ps: pequenas modificações.

3 comentários:

Gabs disse...

Belo texto! Vejo esta questão da seguinte forma:

Uma vez que a educação neste país é sumariamente voltada para futura obtenção de créditos pessoais, ou seja, para se arranjar alguma maneira de receber um salário e sobreviver no sistema, não vejo outra maneira de se encarar essa situação e coibir determinados abusos senão com a opressão. Infelizmente, é o preço que pagamos pela forma na qual é constituída nosso sistema educacional como um todo. Ao meu ver, uma resolução de controvérsias de forma "diplomática" passa obrigatoriamente pela maior valorização da educação pela educação em si, focada no crescimento humano e pessoal de forma mais individual. O que acontece é o oposto. Cada vez menos pessoas se importam em pensar por si, em buscar um caminho próprio ou mesmo em questionar certos fatos importantes do nosso cotidiano. Assim são a maioria dos profissionais que trabalham no segurança pública. Expressões como "presença de espírito", bom-senso, razoabilidade, não se aplicam a eles. Não fazem questão nenhuma de avaliar a medida da força a ser utilizada para determinada situação. Triste. Mas, cumprindo o objetivo de reprimir um pouco a criminalidae, mesmo que ineficientemente, já está de bom tamanho. O mais importante nós já sabemos: não "cante de galo" com eles, pois você estará sempre em desvantagem.

Anônimo disse...

Concordo plenamente com o problema educacional como âmago da maioria de nossas deficiencias estruturais.

Mas talvez o problema que você levantou seja justamente definir a criminalidade, suas nuances e consequencias.

O objetivo nunca deveria ser reprimir a criminalidade per se, mas fazer cumprir a lei, e toda a lei. Desde a Constituição com suas garantias e disposições para a distribuição de renda, saude e educação como muito bem frisado por você, até mesmo respeitar as proibições legais.

Infelizmente, o que ocorre é uma confusão (creio que deliberada por parte dos políticos) entre fazer cumprir a lei e somente defender a lei criminal. Há intenções por trás desta política.

Percebemos, desde muito, que a pobreza não gera o crime (vide Dantas, Petralhas entre outros muitos), e que as penas privilegiam um específico nicho que o estado quer proteger, muito embora não se ocupe de outros considerados fundamentais para extinguir estes (educação diminui o crime como você disse muitissimo bem, isso é fato provado).

Porque a esmagadora maioria dos crimes é ligada ao patrimonio? Uma só questão cabulosa que, se bem respondida, desmonta os alicerces do sistema.

Quanto aos fins (reprimir a criminalidade) justificarem os meios (utilização de força desproporcional), creio que essa posição é inconsequente, geradora de mais problemas que acertos.

O fato decisivo é que ultimamente não podemos mais nos contentar fazendo mea culpa, adotando uma postura confortável, defendendo esta polícia de isolamento e contenção, pois o que eles se propõem a conter e defender da sociedade (seja o crime, seja o delinquente, seja qualquer termo pejorativo dúbio que eles utilizem) há muito já arrebentou seus cordões sanitários, há muito já infiltrou-se nas mentes e ações dos que são legitimados pelo estado para defendê-lo.

Ou há alguma dúvida que a polícia é a instituição mais corrupta, cruel, vil de nossa sociedade?

Abraços meu velho, bom te ver desenvolvendo argumentos tão bons e longos aqui no nosso espaço =)

waltim^^ disse...

Como voçe próprio escreveu, Luiz.
"Todas estas tendências e personalidades que vemos aflorar naquele dia são reflexos de uma sociedade cínica, sádica e hipócrita"

Chega a ser inerente ao ser humano, a violência oprimida. Esta que todo mundo tem vontade de fazer a alguém: Seja por repressão, educação ou até mesmo diversão.
Talvez como um estepe ou um devaneio de suas angústias pessoais, ou até mesmo de sua realização pessoal, incrédulo ou não.
Talvez aquele policial que agrediu o calouro não resistiu, ao impulso truculento presente em suas entranhas morais. Tudo se resumiu ao soco: A covardia, ao sadismo (não obstante em aniquilar a felicidade alheia do estudante), a banalidade dos militantes de nossas corporações de segurança pública, que para vestir a tal farda, submetem a vários exercícios e avaliações, físicas, pisiquiatras, piscicológicas ou até mesmo pedagogas. De que, certa forma, pragmatiza a confiança do policial.
Entretanto, a prática mais uma vez, não concretizou, a teoria, o ideal.

O que significa, que o tipo de tratamento dado ao estudante, pelo, policial, além de nefasto e barbárico, nos remetem aquele arcaico sofisma de que a violência é uma forma prática de educação. O que na verdade é talvez a última, na escala da sociedade humana e do "ser humano"