Dona Divina.
Quente. O ar condicionado não funciona direito. ‘Quinze pras quatro’ de uma tarde modorrenta de quarta-feira. Fome. Mas ainda assim, tranqüilo, sereno. Estudando Direito Penal. “O princípio da diginidade da pessoa blá blá blá...” Soa como ironia.
Ela entra.
“Boa tarde. Gostaria de falar com o Belém.”
“O Dr. Belém só atende às quintas e às segundas. Amanhã ele estará aqui. Eu posso te ajudar?”
“É que eu gostaria de saber por que meu filho teve pedido de semi-aberto duas vezes mas não sai daqui.”
O Dr. Belém é visto como responsável por muitos ficarem, não “passarem” no Exame Criminológico, mas isso é cotidiano. Se existem heróis nessa m* de mundo, o Dr. Belém é um deles. Peço o nome do filho, olho o prontuário, leio para ela as conclusões do último laudo, explico que o laudo dele foi razoavelmente bom e que ele poderia ter saído. Mas já me lembro e pergunto:
“Qual foi o delito (eufemismos....) dele?”
“Latrocínio.”
Engulo seco. Tudo que não gostaria de ouvir. “Latrô”. 157, §3. Crime complexo, que envolve tantas variáveis e componentes quanto grãos de areia nesse mundo. É claro que você pode simplificar as coisas, reduzir, rotular o “delinqüente”, dizer que é desumano... O Bush também comanda a América e quase o mundo, a desigualdade social reina galopante, e nem por isso as coisas certas são feitas ...
Negra. Cansada. Olhos marejados, mas ela não chora. As lágrimas teimam em tentar sair, mas ela não chora. Fica em pé. Altiva. Pobre. Apanhou muito nessa vida. Já sofreu demais. O sofrimento humano não tem limites.
Como explicar a esta senhora que , em se tratando de latrocínio, há uma notável resistência por parte da ‘justiça’ goiana de conceder a progressão? Que, embora não seja comum, há laudos que são bons e que os presos não a tem? Como dizer as palavras mais simples: “Senhora, seu filho está f*...”
“Moço, é que ele caiu com 18 anos, estava com emprego arrumado de garçom; foi no final de semana, no início da semana ele ia trabalhar. Há oito anos que eu puxo cadeia com ele. Todo domingo eu to aqui. Eu sei que ele tem que pagar, mas ele também tem que sair. Ele perdeu a juventude dele toda aqui.”
“Eu sei Dona Divina” é o que eu penso e falo. Concordo com ela. Tento reconfortar. Mas como reconfortar alguém que vive oito anos de prisão, sem estar presa? É claro que ela desconhece um princípio basilar do Direito Penal, constante no artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso XLV: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado”
Como fica bonito assim, escrito, na Constituição...
Oito anos de prisão para esta mãe, e bem possível mais. A possibilidade de ele sair é mínima. Tento manobrar as palavras, não me dou nada bem com a esperança, e não posso dá-la nunca a alguém que tenho absoluta certeza que já a perdeu e não quer reencontrá-la. Tento não ser incisivo, tento “levantá-la”, tento dizer dos meios jurídicos possíveis para contornar esse impasse...
Tento...
“Moço, é que ele só errou uma vez moço. Era novo. Agora, ta usando droga, tá mudado. Ele é um menino tão bom. Eu que sou mãe eu sei; eu vejo ele todo domingo, converso com ele. Falo pra ele ficar bem. Mas ele não fica. E não sai daqui.”
Converso longamente com ela. Peço pra que ela volte amanhã, para conversar pessoalmente com o Dr. Belém, ver o que ele poderia fazer. Mas eu o conheço. Ele nunca iria mudar um laudo para ajudar qualquer que seja. Sempre ético. O que ele vê, está ali. É a vida dele que está no documento.
Dois heróis. Dona Divina e Dr. Belém. Antagonismos.
Ela sai pela porta de minha saleta.Os grandes olhos negros marejados.
E o pior que ela não chora.
Eu? Choro todo o caminho de volta para casa....
“Pick me up, love, from the bottom.... to the top love...
Everyday...”