Recebi uma newsletter do CRBio hoje. Dentre algumas informações, constava de um blog que a geneticista Mayana Zatz assina no site da Veja (blargh). Fui lá dar uma conferida, ver o que uma de nossas melhores mentes científicas anda fazendo.
Como uma última postagem, ela coloca uma questão interessante sobre ética e genética. Transcrevo literalmente:
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Ao escrever, há duas semanas, sobre hemofilia, me lembrei de um caso que vivi na Holanda: um diagnóstico pré-natal (DPN) que envolvia um grande dilema ético sobre hemofilia. Uma situação muito difícil e polêmica.
Ingrid (nome fictício), uma advogada muito bem informada, procurou o serviço de diagnóstico pré-natal, na Universidade de Leiden, na Holanda. Estava no início da gravidez e como seu pai tinha hemofilia, ela sabia que era portadora assintomática do gene causador da doença. Seu bebê, portanto, tinha 50% de chance de ser um descendente de sexo masculino afetado.
Ela contou que era muito ligada ao pai e sofria toda vez que o via com hemorragias ou com complicações relacionadas à hemofilia. Estava disposta a evitar o nascimento de um filho com o mesmo problema e queria fazer o diagnóstico pré-natal. Na Holanda, como em todos os países da Europa, a interrupção da gestação em caso de doenças genéticas é permitida desde que o casal assim o queira.
Ingrid foi informada de que seria possível, através do exame de DNA, saber se o feto era do sexo masculino. Em caso positivo, se ele havia ou não herdado a mutação que causa a hemofilia de seu avô materno. Entretanto, para poder fazer esse diagnóstico seria necessário coletar não só o sangue de Ingrid, mas também de seus pais. "Isso não será problema", retrucou ela. "Somos uma família muito unida. Meus pais ficarão felizes em colaborar." E de fato, no dia seguinte lá estavam os três para realizar o exame.
Qual foi a surpresa?
Ao fazer a análise do gene da hemofilia, descobriu-se inesperadamente que o senhor hemofílico não era o pai de Ingrid. Por um lado, era uma excelente notícia. Isso significava que Ingrid não era portadora do gene que causa hemofilia. Não tinha risco de ter descendentes afetados. A questão ética era: como transmitir essa notícia?
Contar ou não contar?
Esse era o grande dilema ético da equipe médica envolvida no caso. Ingrid não havia procurado o hospital para um teste de paternidade. Ela gostava muito do suposto pai e nem desconfiava da situação. Contar a verdade poderia desestruturar uma família aparentemente unida. Não contar, implicava em ter que fazer os exames - que não deixam de ser invasivos.
O que você faria, se estivesse na situação do geneticista responsável? Contaria o resultado do teste de paternidade ou - para proteger a família - faria o exame do feto, mesmo sabendo que era desnecessário?
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A situação se revela como uma prévia dos problemas vindouros de nosso tempo: os conflitos que, se existirem, serão cada vez mais fortes, no choque entre ética, ciência e o ser humano. Tentei fazer um comentário no blog, mas o computador aqui não abria o captcha, então deixei de lado.
Ocorre que a qualidade dos comentários de pretensos "cientistas", "biólogos", "psicólogos" é absurdamente rasteira e baixa. Revoltado com esta unilateralidade, desenvolvo aqui meu argumento (já encaminhado devidamente ao email da Mayana). Escrevi estas linhas para o comentário:
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Diametralmente oposto a nosso colega Hugo (e todos os outros), penso que em todos os aspectos (éticos, biológicos e legais) o teste deveria ser feito, cujo resultado daria evidentemente negativo, informando à Ingrid que seu filho ou filha são saudáveis e não portadores no caso de filha.
Isto porque a mãe, na hipótese de ser portadora silenciosa, poderia ainda assim ter filhos saudáveis de ambos os sexos pereitamente. Saudáveis plenos. Há esta possibilidade, já que a hemofilia é uma doença recessiva ligada ao cromossomo X: no caso de um cruzamento mãe portadora e pai normal (como no caso), uma criança (qualquer sexo) tem 50% de ter a doença (ou portá-la, no caso de uma filha) ou não (ser absolutamente saudável).
Deste modo, preserva-se a família (e as "gerações") tendo como justificativa a possibilidade do gene para a hemofilia se perder durante o tempo.
Ainda que invasivo, o exame é considerado prática normal, sem mais complicações esperadas.
Cabe perguntar se não haveria, em uma defesa radical da não realização do exame (por ser 'desnecessário') o fator econômico: custos de insumos e tempo. A quem interessa esta defesa?
Agora, com a devida licença, gostaria de discutir um pequeno ponto da argumentação de nosso colega Acácio: 'A estrutura biológica não é determinante para o reconhecimento do ser pai, mas o afeto e atenção.'
Sinto meu caro Hugo, mas seu vocabulário extremamente biológico, reducionista e simplório o impedem de enxergar plenamente a questão: o afeto a que você se refere está intimamente ligado à história da família, à linguagem entre os familiares, à vida entre o pai e mãe e sua filha, à infância e criação da criança.
O afeto não é uma categoria imaginária, uma entidade metafísica, destituída de origem, isolada da realidade.
Revelar uma "verdade" desta pode destruir a família. Estamos tratando de pessoas, com histórias, vidas, amores, segredos, desejos e realidade, como todos nós. Não questões de prova ou experimentos científicos.
Esta é minha humilde opinião.
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A questão, embora complexa, é realisticamente simples. Muitos dos que comentam, desconhecem o fato (pois não está explícito no texto) de que Ingrid pode sim ter filhos sadios não portadores, de ambos os sexos, na hipótes dela ser filha biológica de seu pai e portanto portadora. A explicação lógica (e muito simples) seria que, 'por sorte', o gene da hemofilia se perdera entre as gerações.
Aqui reside, em grande parte, o poder da ciência: exímia produtora/portadora de fatos, que podem se tornar verdades úteis. Poder que fascina e que enaltece, distingue o cientista (aparentemente isolado) do contexto mundano, da realidade crua e caótica, dos que não portam fatos.
Neste caso, há a possibilidade de 'mentir', ou melhor, omitir um dado (e não uma 'verdade') que não prejudica a família passada nem a vindoura, a meu ver preservando os pais e tudo o mais. Não conhecemos a história da família de Ingrid e os porquês.
Grande parte dos que comentam, arautos da verdade suprema, alheios à realidade, os desenlaçados da empatia, prefere, infelizmente, dizer uma verdade, não percebendo que com seus argumentos científicos, proferem, na verdade, julgamentos morais.
Como uma última postagem, ela coloca uma questão interessante sobre ética e genética. Transcrevo literalmente:
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Ao escrever, há duas semanas, sobre hemofilia, me lembrei de um caso que vivi na Holanda: um diagnóstico pré-natal (DPN) que envolvia um grande dilema ético sobre hemofilia. Uma situação muito difícil e polêmica.
Ingrid (nome fictício), uma advogada muito bem informada, procurou o serviço de diagnóstico pré-natal, na Universidade de Leiden, na Holanda. Estava no início da gravidez e como seu pai tinha hemofilia, ela sabia que era portadora assintomática do gene causador da doença. Seu bebê, portanto, tinha 50% de chance de ser um descendente de sexo masculino afetado.
Ela contou que era muito ligada ao pai e sofria toda vez que o via com hemorragias ou com complicações relacionadas à hemofilia. Estava disposta a evitar o nascimento de um filho com o mesmo problema e queria fazer o diagnóstico pré-natal. Na Holanda, como em todos os países da Europa, a interrupção da gestação em caso de doenças genéticas é permitida desde que o casal assim o queira.
Ingrid foi informada de que seria possível, através do exame de DNA, saber se o feto era do sexo masculino. Em caso positivo, se ele havia ou não herdado a mutação que causa a hemofilia de seu avô materno. Entretanto, para poder fazer esse diagnóstico seria necessário coletar não só o sangue de Ingrid, mas também de seus pais. "Isso não será problema", retrucou ela. "Somos uma família muito unida. Meus pais ficarão felizes em colaborar." E de fato, no dia seguinte lá estavam os três para realizar o exame.
Qual foi a surpresa?
Ao fazer a análise do gene da hemofilia, descobriu-se inesperadamente que o senhor hemofílico não era o pai de Ingrid. Por um lado, era uma excelente notícia. Isso significava que Ingrid não era portadora do gene que causa hemofilia. Não tinha risco de ter descendentes afetados. A questão ética era: como transmitir essa notícia?
Contar ou não contar?
Esse era o grande dilema ético da equipe médica envolvida no caso. Ingrid não havia procurado o hospital para um teste de paternidade. Ela gostava muito do suposto pai e nem desconfiava da situação. Contar a verdade poderia desestruturar uma família aparentemente unida. Não contar, implicava em ter que fazer os exames - que não deixam de ser invasivos.
O que você faria, se estivesse na situação do geneticista responsável? Contaria o resultado do teste de paternidade ou - para proteger a família - faria o exame do feto, mesmo sabendo que era desnecessário?
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A situação se revela como uma prévia dos problemas vindouros de nosso tempo: os conflitos que, se existirem, serão cada vez mais fortes, no choque entre ética, ciência e o ser humano. Tentei fazer um comentário no blog, mas o computador aqui não abria o captcha, então deixei de lado.
Ocorre que a qualidade dos comentários de pretensos "cientistas", "biólogos", "psicólogos" é absurdamente rasteira e baixa. Revoltado com esta unilateralidade, desenvolvo aqui meu argumento (já encaminhado devidamente ao email da Mayana). Escrevi estas linhas para o comentário:
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Diametralmente oposto a nosso colega Hugo (e todos os outros), penso que em todos os aspectos (éticos, biológicos e legais) o teste deveria ser feito, cujo resultado daria evidentemente negativo, informando à Ingrid que seu filho ou filha são saudáveis e não portadores no caso de filha.
Isto porque a mãe, na hipótese de ser portadora silenciosa, poderia ainda assim ter filhos saudáveis de ambos os sexos pereitamente. Saudáveis plenos. Há esta possibilidade, já que a hemofilia é uma doença recessiva ligada ao cromossomo X: no caso de um cruzamento mãe portadora e pai normal (como no caso), uma criança (qualquer sexo) tem 50% de ter a doença (ou portá-la, no caso de uma filha) ou não (ser absolutamente saudável).
Deste modo, preserva-se a família (e as "gerações") tendo como justificativa a possibilidade do gene para a hemofilia se perder durante o tempo.
Ainda que invasivo, o exame é considerado prática normal, sem mais complicações esperadas.
Cabe perguntar se não haveria, em uma defesa radical da não realização do exame (por ser 'desnecessário') o fator econômico: custos de insumos e tempo. A quem interessa esta defesa?
Agora, com a devida licença, gostaria de discutir um pequeno ponto da argumentação de nosso colega Acácio: 'A estrutura biológica não é determinante para o reconhecimento do ser pai, mas o afeto e atenção.'
Sinto meu caro Hugo, mas seu vocabulário extremamente biológico, reducionista e simplório o impedem de enxergar plenamente a questão: o afeto a que você se refere está intimamente ligado à história da família, à linguagem entre os familiares, à vida entre o pai e mãe e sua filha, à infância e criação da criança.
O afeto não é uma categoria imaginária, uma entidade metafísica, destituída de origem, isolada da realidade.
Revelar uma "verdade" desta pode destruir a família. Estamos tratando de pessoas, com histórias, vidas, amores, segredos, desejos e realidade, como todos nós. Não questões de prova ou experimentos científicos.
Esta é minha humilde opinião.
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A questão, embora complexa, é realisticamente simples. Muitos dos que comentam, desconhecem o fato (pois não está explícito no texto) de que Ingrid pode sim ter filhos sadios não portadores, de ambos os sexos, na hipótes dela ser filha biológica de seu pai e portanto portadora. A explicação lógica (e muito simples) seria que, 'por sorte', o gene da hemofilia se perdera entre as gerações.
Aqui reside, em grande parte, o poder da ciência: exímia produtora/portadora de fatos, que podem se tornar verdades úteis. Poder que fascina e que enaltece, distingue o cientista (aparentemente isolado) do contexto mundano, da realidade crua e caótica, dos que não portam fatos.
Neste caso, há a possibilidade de 'mentir', ou melhor, omitir um dado (e não uma 'verdade') que não prejudica a família passada nem a vindoura, a meu ver preservando os pais e tudo o mais. Não conhecemos a história da família de Ingrid e os porquês.
Grande parte dos que comentam, arautos da verdade suprema, alheios à realidade, os desenlaçados da empatia, prefere, infelizmente, dizer uma verdade, não percebendo que com seus argumentos científicos, proferem, na verdade, julgamentos morais.
Um comentário:
a linha cada vez mais fina, a lâmina cada vez mais perto e o equilibrista desesperado cada vez mais.
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