quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Bushido


Ato IV, Cena II


Caminhava há muito tempo sem olhar para trás. A cabeça baixa, os olhos percorrendo as folhas, a terra, o musgo que permanecia como há séculos assentado por sobre as árvores. A folhagem bailava ao som da música invisível orquestrada pelo vento; entrava pelas copas das árvores e percorria, do alto até o chão úmido, o caminho que os espíritos fazem quando vêm às florestas, em noites estreladas, para resolver suas pendências de vidas passadas.

Melquíades, absorto, não percebe desta vez a presença do Diabo. Este olha aquele de longe, inquirindo sobre as razões de sua absoluta crença da proximidade do fim. Perscruta os pensamentos de Melquíades, e encontra uma confusão de certezas e dúvidas, como se existissem dois entes ou mais dentro daquele corpo.

Enquanto caminha, Melquíades sabe que o fim está próximo, palpável. Lembra-se dolorosamente dos odores e nuances do início da sua vida, agora que já não os percebe com facilidade. Sua respiração é difícil, sua garganta constringe seus pensamentos e, muitas vezes, sua visão. Quando se cansa, ele apóia-se em uma árvore, sua mão percorrendo e tateando os pequenos ramos do musgo que ali habita. Pressionado pelos dedos, o musgo percebe a triste energia incontida de Melquíades que flui para si, e sente pena do humano.

O Diabo atrás vai, sem alarde, a uma distância segura. Alcança a aura pensativa de Melquíades, e sussurra em seu pensamento: “Meu filho, é natural estar com medo”. Melquíades se conforta por um instante. Imagina que seus receios são infundados, e expulsa, mais uma vez, a sombra que ronda o seu eu, para longe. Sente um frio percorrer seu braço, apoiado a árvore. Olha o tronco da castanheira centenária de cima a baixo. Imagina esta árvore nascendo, sua luta por entre as folhagens, os insetos que a devoraram, a busca pelo sol, suas raízes penetrando mais profundo do solo arenoso da floresta a cada dia, esforçando-se para encontrar a água da vida.

Percebe que a aquela árvore viveu toda a história de sua floresta, sua colina, os murmúrios do córrego que descia mais adiante (Melquíades também o ouvia) que banhava suas raízes indiretamente. Ouvira cantos de centenas de gerações dos mais variados e lindos pássaros, o pio noturno do bacurau, o grito dos gaviões de rapina, o encanto da dança dos tangarás. Sabia que aquela árvore conhecera muitas irmãs que tombaram em tempestades ou acometidas por doenças, vira muitas nascerem e agora buscarem o alto do dossel para se espraiarem nos raios solares.

Ele então soube da imensa distância de seu conhecimento e de seus valores. Soavam mesquinhos ao lado do ser centenário que assomava a sua frente. Melquíades prostra-se e chora baixo, silencioso, como que respeitando a música daquela floresta.

A castanheira desperta de seus sonhos de árvore com o incômodo de algo à sua raiz e olha abaixo. Vê o que parece ser um primata. Não... engana-se, é um daqueles seres humanos que por aqui são, graças aos deuses ela reflete, tão raros. Já ouvira falar das lendas destes pequenos, que habitam algures pelo mundo, de pequenas mãos segurando objetos violentos que rasgam e sangram os seus até a morte, desnudando a face da Mãe até deixá-la irreconhecível.

A princípio, olha com rancor e ódio. Mas então capta todo o sofrimento do animal. Embora se gabe da sua racionalidade e de seu progresso, vive aprisionado pelos seus medos e pesadelos, a vida com maestria regida por superstições da sua ciência quando muito, pois a maioria vive na fé cega das religiões que nunca foram os melhores exemplos de compreensão e compaixão. Habitam pequenas covas que entulham de coisas sem importância, enquanto se matam para manter um estilo de vida que aos olhos de todos é infeliz, roto, vazio, estúpido e auto-destrutivo. Invejam-se, ó sim, como se invejam dos outros e deles mesmos, e vivem numa eterna incompreensão consigo e com seus pares. A castanheira, ao final, sente pena de Melquíades.

O Diabo está parado. Sabe o que a castanheira e o caminhante pensam. A primeira tem compaixão do segundo. Este, ao contrário, está imergindo lentamente em sonhos densos, nublados, sem esperança. Espera até que o pequeno sujeito aos pés da árvore respire mais profundamente. Vê-o enrodilhado como um cão de rua, ao abrigo das raízes tabulares, e lentamente penetrar no interior do mundo dos sonhos mais profundos.

Só assim Ele se aproxima...

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