Na ida para o Rio, o navio em que ela estava ficou atracado em Recife, não me lembro, por uns 40 dias. Era Segunda Guerra Mundial: submarinos nazistas patrulhavam nossas costas, enquanto o país não decidia para qual lado pendia sua balança.
Chegando ao Rio, conheceu de pronto um português, Alfredo Duarte. Meu avô veio para o Brasil brigado com família aos 20 e poucos anos, e jurou nunca mais voltar a terrinha: nunca mais regressou. Veio atrás de emprego com outros irmãos, meus tios-avôs, que já trabalhavam por aqui.
Meus avós se conheceram, se enamoraram e casaram. Viveram muitos anos no Rio de Janeiro, onde tiveram dois filhos: meu tio Luiz Fernando e minha mãe, Glória.
Meu avô trabalhou de caminhoneiro, motorista de onibus, frentista e o diabo a quatro. Valente, quase morreu em uma briga de trânsito: o adversário o 'esfaqueou' com uma chave de fenda. Foi parar na UTI, mas não foi daquela vez.
Sabe, meu avô era osso duro. Mas minha avó era maior: tamboril velhaco. A história dos dois não poderia nunca ser resumida assim.
Eu nasci em Uruaçu. Minha avó foi minha segunda mãe. Minha mãe trouxe minha avó para Uruaçu depois que ela e papai se mudaram. A casa de minha avó, uns 100 metros da minha, era meu esconderijo predileto, no fim da rua, quando fugia de casa: sabendo que tinha feito merda quando era moleque. Foi na casa dela que quebrei os dois braços de uma vez: "não sobe na árvore molhada menino", eu fui e estatelei-me no chão. Engessei só um, porque filho de médico: casa de ferreiro, espeto de pau.
Minha avó era a mestre a culinária: a maior de todas, indubitavelmente. Almoços de domingo, com as duas mesas postas na garagem da sua casa: não tínhamos banco, sentávamos na mureta, e dale puxar mureta achando que era cadeira; claro, não moviam. Não posso nem lembrar das delícias porque me doem muito sabe: e não consigo imitá-la, embore tente a qualquer custo.
Eles tinham um galinheiro do lado, que eu gostava de ir pegar os ovos das galinhas, porque era legal correr delas quando ficavam bravas ou separar um pintinho do bando e ficar com ele na mão. Meu avô odiava minha farra no galinheiro.
Eles tinham uma horta também sabe, daquelas pequenas, com pé de couve, alface, um outro tomatinho, cebolinha, salsinha, do lado da casa de ferramentas do meu avô. Um quartinho pequeno, com um armário meio enferrujado, com todas as ferramentas do mundo: eu ia lá e pegava cada uma delas e às vezes perdia, e apanhava do meu avô.
Vovô era muito bravo, e minha avó sabia segurá-lo quando ele pegava o cinto. Não me lembro de nenhuma surra do meu avô, acho que era só ameaça. E com ela aprendi que água com açúcar acalmava os ânimos (embora quando eu tivesse quebrado os braços, a água que meu avô preparara não surtiu efeito: ele não tinha a magia).
Vovô morreu muito lentamente. Muito. Foi dolorido para todos que estavam lá, todos os dias, ele definhando: vítima de vários AVC's. Ele sofreu muito, muito mais que todo o mundo que eu já pude ver sofrendo morrer. Eu aguentava aquilo meio anestesiado, até o dia que ele morreu.
Lembro que a primeira vez que eu o vi, defunto, ele estava com a boca aberta. Não minto, acho que adianto muito o contar. Antes disso, fui católico: batizado, eucaristizado e crismado. Arranjei até uma madrinha de crisma, muito amiga de vóvó, cheia da grana: ela não me deixou um tostão de herança, tia Carminha. Gente boa era ela. Minha avó era carola ao extremo: segurara a mão do Papa João Paulo II quando ele veio em 70 e poucos aqui.
Nessa época, devia ter uns 14 pra 15 anos, eu rezava muito, todos os dias, para que meus avôs só morressem depois que eu tivesse 18 anos: eu precisava já ser forte para aguentar a porrada que seria.
Meu avô morreu em julho de 2001. Ele estava com a boca aberta quando vi. Depois amarram com um lenço seu queixo caído. Minha avó só dizia: "Ai, meu Lopes". O maior amor do mundo. Ajudei a carregar meu avô para a urna, pra dentro do carro, pra dentro da igreja, pra fora da igreja, pra dentro do túmulo. Vovô se foi.
Depois que o vovô se foi, minha família se implodiu. E tudo passou a ser diferente. Minha avó continuou, claro, porque era muito forte, porque era tudo. A nossa caravela, que perdera as velas com meu avô, ainda segurava um prumo com o timão que era minha avó.
Depois minha mãe foi pra Alto Horizonte, e minha avó foi junto, fazia uns 7 anos mais ou menos.
Minha avó era minha macumbeira maior: todas as provas que fiz na minha vida consegui, e tenho muita certeza que somente por causa da magia da minha avó. Eu sempre soube que era bruxaria, que era magia da mais pura, e não tinha nada a ver com religião: era uma conexão íntima com o espírito do mundo. Por mais que novenas, terços e ave marias ela rezasse, toda a energia que ela dispunha ela depositava na gente, na minha mãe, no meu irmão, e em mim. Sempre.
E depois de amanhã eu começo a trabalhar no Ibama: de longe, a maior macumba que ela já fez por mim. Acho que por muito disso, ela se enfraqueceu, talvez: tanta fé e energia tem que ter um fundo aqui.
Eu sei que aquele coração imenso de 87 anos que veio la do Acre, foi ao Amazonas, ao Rio de Janeiro, visitou muitos estados, veio pra Uruaçu, criou-me da maneira mais sublime que podia, parou de bater hoje às 16:05 da tarde, aqui em Goiânia. Ela nos viu ainda hoje, e me reconheceu, como não poderia deixar de ser, falando: "Ah, é o Luizinho...", pouco antes de falecer. Morreu como um passarinho.
Sentada, ela deu somente um suspiro de "ai..." e voou. Não estava lá, minha mãe estava com ela. Meu tio estava viajando. Não reclamou, não chorou, suportou tudo mais que bravamente: ela era porreta, tora de aroeira. A melhor filha do mundo estava do lado dela, acho que ela foi tranquila, olhando para minha mãe.
Minha avó morreu. Minha nau se deita despedaçada. Com ela, vão lembranças de uma época que nunca mais vão voltar, e nem poderiam. Ela se vai com muito de mim, mesmo eu sabendo que muito dela fica conosco. O que resta de nós agora pra frente, não sei dizer.