Ato VII, Cena III
Melquíades se encontra perdido na densa neblina, o único remo que resta pende ao lado de seu corpo, um sol de meio dia atravessa o nevoeiro, a opacidade lhe é própria dos olhos. Na vigota da proa, o Diabo está sentado.
Diabo:
Acorda.
Melquíades:
Deixe-me em paz, pelo menos aqui neste momento.
Diabo:
Fraco como sempre. Lá me vem a cantar exéquias antes do fato.
Melquíades:
Essa sua arrogância me cansou há muito tempo.
Diabo:
Que se há de fazer, sou o Maldito. Sabes que toda a sorte de defeitos e malefícios são creditados à minha pessoa.
Melquíades:
O que você veio fazer aqui?
Diabo:
Vim lhe acompanhar a dar cabo da idéia imbecil, porém a mim deveras satisfatória, que há muito ronda tua pestana. Sei que há algum tempo eu coloquei-lhe pedras no caminho que seriam suficientes para levar-te ao sanatório ou ao cemitério. Mas, deus sabe por que, eu me afeiçoei a você. E por isso, eis-me.
Melquíades:
Veio me dissuadir?
Diabo:
Com que pensas que estás falando? Com Deus? De maneira alguma lhe falaria “não faça”. De minha parte, saiba que aguardo ansioso.
Melquíades:
Seu abjeto. Aflição e sofrimento. Não cansa do eterno tormento da humanidade?
Diabo:
Tua própria pergunta lhe responde. Sou eterno. Aliás, permita-me um gracejo. Fazia alguns anos que não sorvia com tanto deleite angústia e desgosto tão reais, tão puros, tão... românticos.
Melquíades:
Sim, sofro... Por ela, ainda haveria de sofrer mais, se vida houvesse.
Diabo:
Repetindo fatos conhecidos de todos. Derrama-te o tempo todo, andas encolhido, macambúzio e quase não conversa. Emagrece a olhos vistos. Finge não vê-la, mas só aumenta a imensidão de teu vazio com os rápidos relances que lhe chegam às vistas. És tolo, feito da matéria prima dos néscios e derrotados. À luz, transparece todo o seu desejo. Por isso andas na sombra. Belo espécime de uma raça há muito extinta. Prazer deu-me durante sua existência. Desde já, estou grato.
Melquíades:
Todo este predicado só me mostra o quanto seria e não fui. O quanto deveria mas não pude. OLHE PARA MIM! Minha dor, você a sente?
Diabo:
Claro que a sinto. Sempre a senti.
Melquíades:
Como poderia então suportar acordar e adormecer sem pensar em nada a não ser nela? Vejo-a sem vê-la. Quando não está, sou tangará em cortejo . À simples visão de sua silhueta, desfaço-me
Diabo:
Para você nunca houve em nenhum tempo, nem com ela nem com as outras.
Melquíades:
Por isso eu quis que ela sofresse. Amaldiçoei-a e parti. Apartei-me de vez por todas dela. Mas ela não sofreu. Nem se deu falta. O tempo passou, e minha sutil permanência que outrora era inconcebível ausente se tornou um retalho de uma capa há muito surrada pela chuva. Agora estou desonrado. Novamente maculado, não consigo suportar mais o fardo de ter o pior dos papéis, o do assassino que é pego com a faca no aposento do rei, do ladrão que não consegue carregar o furto, o do tolo que nem entender a situação conseguiu. Estou definhado.
Diabo:
E aqui estamos. Vamos, o que você precisa? Que eu cante uma canção singela? Recite uma poesia? Com esta neblina... Ausência seria o derradeiro sentido irônico de uma vida estúpida.
Melquíades:
Não tenho mais onde colocar tuas ofensas em meu peito. As lágrimas, todas elas, sulcaram minha face, transformando-a no meu próprio relevo das memórias. Mesmo não vendo, toco por onde cursou toda minha vida de melancolia e insegurança. Mas basta. Deixe que me enlaçarei no alto do mastro e o peso de meu corpo inútil tolherá meu sopro de vida.
Diabo:
O mastro há muito se foi. Talvez nem tinha. Não me lembro.
Melquíades:
Então, dê-me a faca.
Diabo:
Agarra-a.
Melquíades:
Oh, hora derradeira! Oh, destino inconcebível para quem trilhou tantos sonhos quando menor. Quantos caminhos que poderiam desaguar em portos abarrotados de felicidade e compreensão, ternura e alegria! Oh, tristeza que agora me confrange, somente aporto em mares inóspitos e, em casas, nem pouso no alpendre é me dado. Levo comigo esta vida que seria e não foi para algum local onde a lembrança dela não me encontre, onde o perfume não me inebrie. Lá, não encontrarei fortuna, somente os mortos e as almas que se arrastam em uma imensidão de poeira, miséria e tristeza. Mas lá não sofrerei com sua imagem presente, o abandono desordenado de sua serenidade ao alcance do toque de meus dedos fracos. Não, lá não lembrarei de quando estivemos juntos, nem sonharei com a proximidade que nunca existiria, a não ser em meus devaneios.
Diabo:
Mutila-te, vamos, arranca de sua carne toda a nódoa que ela impregnou. Acerta-te em cheio, seja pelo menos honrado, como o guerreiro que você sempre sonhou a sua vida toda. Que este último momento de sua existência seja teu instante de serenidade e quietude buscado desde sempre.
Melquíades:
Não consigo, tenho medo!
Diabo:
Vamos homem, seja varão! Ampute-a de você. Agora!
Melquíades traz a faca junto ao ventre, a ponta coçando à altura do plexo solar . O braço levanta poucos centímetros. Um golpe seco, um suspiro longo. Lentamente, Melquíades curva-se sobre os joelhos. Os olhos mareados apertam, o rosto contorce-se em um espasmo violento. Merda e urina escorrem pelas pernas. Ele levanta a cabeça e olha o Diabo, que continua na mesma atitude desde o inicio, com os braços cruzados sobre os joelhos, olhando, sem tristeza, nem dor, nem alegria. Simplesmente testemunhava. Melquíades encontra este olhar distraído e reúne as ultimas forças. Com um forte puxão, abre uma fenda em direção ao tórax, mas não passa do esterno.
Melquíades:
Drogas...
Ainda curvado, lentamente introduz a mão direita e tateia. Encontra um arfar lento mas vigoroso de um músculo. Encosta sua palma em seu coração. Tenta apertá-lo, tenta sufocá-lo. Mas o maldito teima
Diabo:
È uma pena. Nunca conseguiu ver a cor de seu coração.