Ontem, como é costume, centenas de estudantes foram ao Parque Vaca Brava comemorar o resultado do vestibular da UFG.
É uma festa grande, bagunçada, algo descompensada, onde os calouros tomam trote dos veteranos, quase se afogam nas águas do lago, se emporcalham, bebem muito e apanham, quase na mesma medida. Meninos e meninas que mal saíram das fraldas após meses, quando não anos, de muito sofrimento, expectativa, ansiedade, privação e esforço, esperam se encontrar, enfim, com o êxtase de sua aprovação. Querem comemorar e querem se libertar de tudo o que os oprimiu, angustiou e machucou durante esta jornada.
Há muito tempo também que setores da sociedade reclamam desta farra, da sujeira e da anarquia que é instaurada, a violência com que se praticam os trotes, a bebedeira descontrolada, o tumulto no trânsito, enfim: tudo que foge ao controle, que era reprimido e se libera; o oculto agora revelado neste único dia no ano. Pois ontem não foi diferente. A mesma alegria confusa se espraiou ao lado do parque. A mesma violência em alguns trotes, algo até mais cruéis; a mesma progressão percebida em um calouro que nunca havia bebido antes, ao entornar forçosamente destilado (seja por medo de ser taxado como covarde frente aos teus, seja por arrogância e audácia): primeiro a euforia e a alegria, sendo sucedidas por vertigem, cambaleios, vômitos, e em alguns casos, desmaios.
Deveria existir limites a tudo isto? Não. Não creio que devemos limitar esta festa, não devemos doutrinar a alegria, impor barreiras ao descontrole que, em sua maioria, é saudável. Mas creio que deve haver, acima de tudo, responsabilidade e consciência de que há conseqüências em tudo que fazemos, ou aceitamos que outros façam conosco.
É nesta faixa da realidade que o calouro deve situar-se. O que ele encontra ali é vida em manifestação crua; é o que ele encontrará pela frente em sua existência. A violência dos trotes nunca se resumiu ao trote. O apelo do álcool da celebração perfeita nunca se situou somente naquele dia, não é caracter indelével dos estudantes. A perversidade de certas práticas que manifestam-se naquele dia não é singular. Tapas, socos, pontapés, puxar cabelos, arrastar pelo chão, enfiar a bota suja de lama na cara do outro, pisar em suas costas: estas manifestações não são característica intrínseca daqueles que ali festejam.
Todas estas tendências e personalidades que vemos aflorar naquele dia são reflexos de uma sociedade cínica, sádica e hipócrita. A violência está dentro dos lares e escolas desde muito cedo, pelas pessoas ou pela televisão e o noticiário, está no trato com os outros, no trânsito; o álcool e as drogas já se perdem no tempo como um dos grandes pilares que se sustentam a vida cotidiana, seja para celebrá-la, seja para fugir dela (e esta nuança é tênue). O que seria o álcool e o fumo se não fosse a propaganda?
Hipocrisia e vilania é acusar os jovens de serem os únicos responsáveis por tudo e não assumir a parte que, há muito, sabemos que nos pertence.
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A agressão cobarde de um policial militar ao estudante W. G., que desferiu um soco brutal na boca do menino, já algemado, já dominado, circundado por 8 policiais militares e filmada é uma das cenas que destoam a celebração de ontem e reflete de forma cristalina a confusão que nos metemos nessa altura do campeonato.
Parto das imagens apenas. Não quero esperar as versões que serão liberadas, discutidas, confrontadas, para, ao final, tudo restar-se por baixo do tapete:, sem nenhuma mudança promissora para a nossa sociedade. Tudo pode quedar-se leviano, mas é um risco que assumo.
Curiosamente calouro de direito, assumo que W.G. seja menor de idade. Porque somente por este fato poderia existir qualquer embasamento legal para que os policiais ordenassem que ele entregasse a garrafa de vodka. É inconcebível que ele tenha sido algemado por se recusar a entregar uma garrafa de vodka em uma celebração de rua. Sabendo ser menor, naquela situação, a PM deveria tentar todas as alternativas antes e em último caso conduzi-lo ao juizado da infância e adolescência, sem violência (diga-se, aparente).
Resta acreditar que o jovem, talvez arrogante e audaz como os calouros de direito geralmente o são, tenha desacatado o policial, não apenas resistindo a uma ordem de retirada do local ou entrega da garrafa, mas proferindo impropérios vários aos policiais. Mas nem isso justifica, de maneira alguma, a atitude do policial. Porque todos sabemos como funciona o desacato: primeira e última arma do arsenal de barbaridades, postas de pleno direito, ao policial truculento em seu exercício ignóbil. O crime de 'desacato à autoridade policial' é uma herança maldita do período ditatorial em nosso país, e deveria ter sido varrido, juntamente com quaisquer de suas sombras, de nosso ordenamento.
O que me leva a um terceiro ponto: em que planeta aquele jovem viveu todos estes anos? Ele não sabe como a realidade funciona? O que é a polícia? Como os pais nunca, por menor que seja o caso, não sentaram com o moleque e contaram algumas destas histórias de medo e abuso policial? Porque todos possuímos histórias de abuso policial, de abordagem violenta, de humilhação pública. No mínimo, mesmo estando totalmente correto, o jovem deveria ter acatado a ordem e saído. Não o fez, e a consequência real de seus atos assomou: aqueles não eram os policiais montados em bicicletas do parque, eram tropas de choque do estado. Porque não há como argumentar com a polícia (ela é surda e burra). Não há como se defender da polícia (ela é açoite e ordem). Qualquer outra atitude que não a de submissão total e incondicional tem como conseqüência a dor.
A polícia militar é instituição de horror e repressão, antes designada para as periferias e portanto oculta aos olhos da burguesia. Agora com este levante de autoritarismo e endurecimento em que passamos, renovação de um fascismo latente há muito tempo, ela trouxe, para o seio da classe mais favorecida e até então protegida todas as penúrias, rompantes, ilegalidades e abusos que se acostumou a cometer e infligir, quando invisível aos olhos da imprensa e políticos, nos menos favorecidos. É provável que o caso ganhe alguma repercussão midiática, posto que filmado e acontecido em um dos bastiões da pretensa segurança social, e alguma discussão sobre esta violência policial em particular. Meu palpite: não resultará em nada. Mudanças mais profundas devem ser feitas.
A atitude absurda da polícia e, talvez, a audácia de um calouro de direito juntas deitaram o caldo. O que resta é esperar que este episódio produza alguma reflexão, tanto na turma que adentra na faculdade de direito esse ano, quanto no jovem que sofreu essa agressão covarde: espero que ele tenha essa experiência em seu âmago e lute contra as injustiças e ilegalidades deste sistema; que não a aceite como uma vergonha, ou como um erro, e esqueça em seus porões da memória. Porque fatalmente os fantasmas retornam e assombram.
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Meu pai é um exímio contador de histórias.
Nascido no Rio de Janeiro, sou fascinado por tudo que ele viveu. Me contou apenas uma vez esta história, e sempre me lembro dela (embora as tinturas estejam muito misturadas). Ele retornava para casa lá no Morro do Tuiuti, na Mangueira. Em São Cristóvão, perto do Batalhão da PM, antes das ladeiras do morro, uma blitz da PM. Voltava de um futebol no sábado. Foi parado, desceu do fusca, e o baculejo de praxe. Meu pai, sem mais nem menos, antes de ser liberado, leva uma bofetada na cara de um policial que estava ao lado, nenhum motivo.
Aquela bofetada pesada, que te derruba no chão. Terminada a sessão de humilhação, a ele é permitido se recolher ao carro, e antes de sair, o policial avisa:
"Isto foi por você não ter dito sim senhor nenhuma vez."
Meu pai, liga o fusca, engata a primeira:
"Pode ir", diz o policial
"Sim senhor", retruca meu pai
Move-se o fusca um pouco mas não se dá por vencido e grita ao milico:
"Ah seu filha da puta, corno, viado, tua mãe tá na zona seu broxa!"
E acelera, disparando para casa.
Ps: pequenas modificações.